quarta-feira, 19 de julho de 2017

Fabíolas

São duas as pequenas Fabíolas. Para ser mais específico, são duas as pequenas Fabíolas Martins Araújo da Silva. Além da fantástica coincidência do nome, as duas são idênticas em todos os outros aspectos – e elas nem sequer desconfiam disso. Ambas moram com seus pais, também idênticos, em uma casa bem humilde de igual aparência em madureira, com dois quartos e de cômodos extremamente pequenos e apertados. Já tiveram ambas sete festas de aniversário, tendo sido a última na escola, com ornamentos da Mulher Maravilha, junto com os amigos e familiares. Medem um metro e quarenta e oito, têm a pele clara e os cabelos morenos e não desgrudam os olhos azuis da TV ao chegar da escola. O jeito reservado de menina bem comportada, assim como o ódio mortal por cenoura e qualquer tipo de alimento laranja também eram mútuos entre as meninas.
Aos dez anos, não era incomum vê-las largando mão de assistir aos desenhos que tanto idolatravam para passar a tarde inteira depois da escola ao pé da janela atracadas com livros sobre a vida animal. Eram apaixonadas por biologia. Suas mães, também idênticas e de mesmo nome, adoravam a cena e achavam muito tocante – visto que elas jamais tiveram a chance de estudar por terem tido que trabalhar cedo. Sempre levavam um Nescau para as meninas sem ter coragem, no entanto, de interrompê-las por um segundo sequer.
Com doze, as Fabíolas, já mais crescidas, fizeram muitas amigas na escola e o sonho da biologia cintilava como safiras nos dois pares de olhos de cor azul. Quanto mais cresciam, mais descobriam sobre a variedade da vida e seus planos agora iam em direção ao mar. No ano anterior descobriram sobre os peixes que vivem na escuridão total e usam da bioluminescência para atrair presas, e ficaram fascinadas com essa informação.
Com isso, as Fabíolas já haviam decidido seu futuro: seriam grandes biólogas, conhecidas no mundo todo. As meninas não abraçavam um urso de pelúcia ao dormir, e sim a imagem do futuro, onde elas estariam onde gostariam de agora estar. Era assim desde que viram o Sergio Rangel no programa da Eliana num domingo qualquer, quando menores. Ou era aquilo ou não seria mais nada.
Porém, como nem toda história fantástica tem um final fantástico, as Fabíolas idênticas cresceram e viraram mulheres, mas uma delas, fatalmente, está hoje morta. Talvez a maior diferença – se não a única – entre as Fabíolas em todos esses anos tenha sido o fato de uma respirar e a outra já não mais. Obra do Destino.
O Destino, que é um dos mais poderosos deuses de que se tem notícia, é extremamente atarefado. Trabalha sem parar, decidindo o rumo das pessoas e de todos os seres em todos os momento. É dispersivo por natureza, então, por vezes, usa de pequenas ironias e brincadeiras como distração, antes de voltar ao trabalho rotineiro. Foi essa a forma que achou para se manter sempre entretido. Já não era sem tempo que ele resolvesse brincar um pouco, e assim o fez.
Em seu tabuleiro de xadrez das variáveis do tempo e espaço, escolheu dois Chevettes laranjas para aquele dia de brincadeiras. Dos dois carros idênticos, escolheu um e afrouxou um parafuso e deixou o outro carro inalterado. Em madureira, era o pai das Fabíolas, seu Antônio, parado perto do ponto de ônibus com as escassas compras do mês. Chamou a atenção dele o Chevette laranja que ia vindo a toda velocidade em sua direção e raspou a poucos centímetros de sua barriga, quase atingindo-o. Xingou e reclamou com todos à sua volta sobre o maníaco irresponsável que poderia matar um qualquer dia desses. Seu Antônio estava morto de alívio em segredo.
No entanto, aquele Chevette que quase o matou, só não o fez pois estava bem regulado. E não é desse pai que estamos falando.
De mesma aparência, nome e personalidade do primeiro, o Seu Antônio, pai da outra Fabíola, teve de diferente somente a sorte, tendo sido atingido em cheio  pelo Chevette e morrido poucos segundos depois, comprimido contra a parede daquele prédio demasiadamente branco. A comoção foi grande e a multidão logo se aglomerou em torno do corpo, da lataria amassada e do vidro estilhaçado.
Terminada a travessura, o tédio havia passado e era hora do Destino voltar ao trabalho.
Ao saber da notícia, em todo o seu desespero de mãe, dona de casa e agora sem seu marido, a mãe da adolescente rapidamente desenvolveu um quadro de depressão. Fabíola ainda não tinha o aparato emocional necessário para interpretar em sua plenitude a desgraça em que seu núcleo familiar acabara de mergulhar. O futuro seria sombrio para essa Fabíola em específico.
A outra Fabíola seguia normalmente. Seu pai estava bem de saúde, porém mal de dinheiro, como de costume. Mas estava vivo, isso era o que importava. Sua família, apesar de pobre, ainda conseguia se sustentar e bancar os lápis de corujinha e estojo de ursinhos da filha, assim como a própria alimentação da garota. Se alimentava, porém, mais de seu sonho de ser bióloga do que de proteínas. Ainda mais considerando que os tempos de vestibular se aproximavam e por conta disso não havia uma viva alma que se lembrasse da fisionomia de Fabíola que, trancafiada por vontade própria em seu quarto, não fazia nada além de estudar para os exames. Os pais, como de costume, admiravam o ritual com total abnegação.
Para a outra Fabíola, órfã de pai e com mãe doente, a biologia havia deixado de vez a cabeça, visto que a confusão lacerante e as primeiras centelhas de desespero agora ocupavam todo aquele espaço. O sonho já nem podia ser mais visto. Vista mesmo era Fabíola, todos os dias, vendendo balas no sinal perto do Mercadão de Madureira, que as comprou com suas pequenas economias para vender na rua. A ideia do negócio havia sido de sua própria mãe que, se outrora não interrompia os estudos da filha nem por decreto, agora, sem o sustento do marido, encorajava o abandono do sonho para abraçar a própria subsistência e também a da adolescente. Fabíola não aparecia na escola já havia sete meses.
Alguns anos depois, era hora da outra Fabíola, a quem o destino deixou em paz, entrar na faculdade. Seus olhos cintilavam ao conhecer os corredores, salas de aula e até mesmo laboratórios da universidade. Só de pensar em tudo que aprenderia ali sobre tudo que ainda não sabia a extasiava. Seu coração explodia em chamas da mais genuína felicidade e ela precisava a qualquer custo não deixá-lo escapar pela boca.
Estudou muito, mas muito mesmo. Tanto para entrar na universidade, quanto para continuar nela. Seus pais, orgulhosos, não falavam de outra coisa se não da Fabizinha ter entrado pra Federal de primeira. Não faltava assunto quanto o tópico era a filha. “Não sei de onde veio tanta inteligência e garra”, era uma de frases preferidas de Seu Antônio. A mãe geralmente ria ao ouvir a frase se repetindo, mais uma vez, nas conversas, enquanto Fabíola invariavelmente se envergonhava em toda ocasião do tipo. Ser o centro das atenções nunca foi exatamente seu forte. Fabíola, por esses motivos, não planejava nem tão cedo apresentar Felipe, seu namorado da faculdade, aos pais. Ela decidiu que era prudente esperar um pouco para a grande revelação.
Já a outra Fabíola não namorava, apenas corria. Ultimamente corria muito para pegar dos retrovisores as balas que deixava à mostra aos motoristas sempre que o sinal fechava. Corria tanto que agora era possível até mesmo enxergar uma diferença entre ela e a outra Fabíola: ela estava uns dez ou doze quilos mais magra que sua doppelgänger universitária. Numa dessas idas e vindas, descuidou de sua caixa de Halls e um vendedor de um sinal rival roubou-a enquanto Fabíola estava distraída atendendo um motorista que sempre comprava com ela. Fabíola correu mais que de costume atrás do larápio. Correu em vão. Ela era boa de perna mas não tanto assim e ele já estava longe. No meio da rua, desolada, ela atira ao chão o pouco dinheiro que conseguiu da última venda e o chuta pra longe; seu chinelo também se desprende de seu pé e sai rodopiando e desaparece. Os carros ao seu redor aceleram aos poucos conforme dita o sinal verde, deixando para trás Fabíola, lentamente.
Sem ter mais o que vender naquele dia, ela volta pra casa. Móveis, pouco restam no casebre. Fabíola precisou vender a maior parte deles para bancar a internação da mãe, que havia desenvolvido uma forte pneumonia de tanto ficar deitada em casa. Fabíola conseguiu o dinheiro para interná-la com um esforço indizível, mas sua mãe veio a falecer apenas alguns dias depois daquilo.
Ainda revoltada com o furto, ela revira o quarto, também vazio de móveis, em busca da última caixa de Halls que havia comprado, pois o estômago já estava roncando e logo estaria anoitecendo. Ela precisava voltar para o sinal o mais rápido possível e vender mais. Ledo engano de Fabíola: a última caixa ela havia levado hoje para a frente do Mercadão.
Em meio a um choro descontrolado, Fabíola esmurra as paredes, derruba tudo que vê pela frente. Como que por um estalo, decide pegar uma grande faca na cozinha e sai porta afora com ódio nos olhos e uma fúria no coração como há anos não sentia. Ela sabia onde o ladrão costumava ficar e não ia deixar aqulio barato.
O Destino dormia. Acordou sem esforço, sentou-se na cama e olhou rapidamente para o relógio de pulso. Porém, não era dele o momento de se manifestar, não dessa vez. Virou-se para o lado e acordou a amante, que dormia tranquilamente até então. O momento era propício, e ele aconselhou a Morte a se ocupar de fazer seu trabalho já há muito protelado e dar cabo a Fabíola, como havia dado a Seu Antônio e a mãe da mulher, alguns anos antes.
Em outro plano, podemos ver que, após centenas de horas de estudos, noites mal dormidas e exames, a outra Fabíola finalmente se forma bióloga. O sucesso é retumbante, ela sabe, e seu planos funcionavam como uma flecha. Mais que isso, tornou-se doutora em estudos da vida marinha em profundidades abissais, e mora hoje na Austrália, prato cheio para estudos do tipo. Vive ainda um casamento pleno com Felipe, o mesmo dos tempos de faculdade, que apresentou aos pais poucos meses depois de formada.
A dedo e ao longo de bastante tempo, Fabíola e Felipe escolheram juntos a Austrália como futura moradia. Por alguns anos, eles trabalharam duro para conseguir a mudança de vida – deixar para trás o Brasil e mergulhar em mares australianos em busca da vocação mútua. Compraram uma casa e se estabeleceram na capital, onde já tinham emprego arranjado desde antes de deixar o país sul-americano. Começariam a vida nova como pesquisadores em uma importante universidade local. Não dava pra ficar melhor que isso. Eles viviam exatamente a vida que planejaram e o Destino havia sido bondoso com eles. O plano de Fabíola era trabalhar e juntar dinheiro por quatro ou cinco anos, para então ter um filho, para o qual já tinha até nome decidido: Antônio. Em relação à sua vocação de esposa e bióloga, no entanto, o sonho já estava concretizado, e o momento era de trabalhar duro para tecer sonhos futuros.
Em um outro lugar, distante dali, havia o sangue. A Morte havia finalizado mais um trabalho e se preparava para ir embora, limpando mecanicamente o sangue quente da foice com um pano. Fabíola estava, por fim, morta. No meio da rua, a mulher em posição fetal reunia uma multidão de curiosos, num velório improvisado dos que não conseguiram vencer a própria curiosidade. O burburinho dos comentários só não é mais desagradável que a pena dissimulada dos que na verdade nada sentem. O clima era macabro durante o espetáculo da perda da vida, do sangue que corria ordenadamente ao bueiro mais próximo daquela rua imunda.
Na cena fúnebre havia um homem inconsolável, seu choro poderia ser ouvido a muitos quarteirões de distância. Enquanto ele esmurra a lataria do ônibus laranja, manchado com o sangue de Fabíola, seu mundo se esvai como vapor, vira de cabeça para baixo, cada segundo um pouco mais. Talvez tivesse sido melhor nunca ter se mudado para a Austrália com sua amada. Por que raios havia deixado ela convencê-lo a se mudar?! Por que ele não escutou a voz da razão, a voz do Medo, que o aconselhara tantas vezes a desistir dos planos, que eram ambiciosos demais? Certo seria ter construído uma vida simples no Brasil com a esposa. Mas Fabíola nunca lhe deu ouvidos, para azar dela e também do rapaz, visto o resultado de todas as decisões tomadas até ali. Felipe estava só, num mundo desconhecido. Fabíola já não respirava.
Sobre a outra Fabíola? Essa ainda se encontrava do outro lado do mundo, mais esperta do que nunca. Havia conseguido matar o rival com uma punhalada certeira na nuca. Os conhecimentos de biologia tinham lhe servido pra algo, afinal de contas. A autoria de seu crime jamais veio a público e seu paradeiro para sempre permaneceu desconhecido. Sabia-se que estava viva, no entanto, pois todas as pessoas que por ela foram furtadas sabiam que aquilo não havia sido obra do vento. Fabíola estava viva, e talvez viva até demais.
A Morte, indiferente como sempre, ia se preparando para dormir. Seu semblante é de cansaço e falta de ânimo. Antes de adormecer, porém, percebe no rosto do Destino um sorriso que, ela sabia, era indício de mais uma travessura bem-sucedida.

sábado, 24 de junho de 2017

A mulher dos livros

Hoje é o dia. Já faz bastante tempo que eu passo pelo homem dos livros do metrô para o trabalho, e o caminho inverso também. Hoje finalmente decidi mudar as coisas e sacar uma nota de 20 especificamente pra comprar um livro com aquele senhor que sempre parece alheio à agitação da estação do Flamengo. Sempre distraído, ele fica sob a maior árvore que ali existe, ao lado de sua banquinha de livros de todos os tipos, ele fica lá sentado por horas. Já vi até Dostoievski em sua coleção.
Hoje ele não me escapa. Vou encurralá-lo como um gato encurrala um ratinho que foi pego roubando um grande pedaço de queijo suíço na cozinha. Hoje, um daqueles livros será meu, mesmo que eu acabe por não lê-lo nunca, a questão era de – não digo de honra, mas de teimosia. Queria não ser tão teimoso mas sou.
É a minha estação. Desço do metrô lotado e me apresso até a banquinha, logo após passar pelo caixa eletrônico. Lá está o Sr. Anônimo dos livros, Sr. Vendo livros ou ainda Sr. Mate sua curiosidade. Como de costume, ele está em sua cadeira metálica dobrável, com o ouvido colado a um rádio de pilhas, olhando para o nada e, ao mesmo tempo, para si mesmo. Me aproximo e percebo que seu cartão de negócios é a indiferença. Ele não me dirige a palavra, mal me reconhece como ser humano, que dirá como cliente. Provavelmente deduz que eu seja mais uma das centenas de pessoas que por ali passam diariamente, olham dois, quatro, dez livros, pegam, folheiam, viram de cabeça pra baixo, examinam... Só faltam pegar uma lupa do bolso. E no fim, dizem para ele, como quem diz para si próprio “Na volta do trabalho eu passo aqui de novo, obrigado”, com o maior sorriso falso do mundo. Seria muito desgastante dirigir a palavra a tamanha população de pesquisadores de livros usados de rua, eu reconheço isso.
Eu me aproximo com cautela de um livro que me atrai a atenção. É Dickens. Traduzido, mas é Dickens. Pego o livro, tentando espiar se o homem me espia e tentando evitar que ele espie que eu o espio. Folheio um pouco, percebo que não é o que eu pensei.
– Olá, bom dia. Quanto custa esse aqui?
O homem ainda leva uns dois segundos antes de reunir a disposição e a força de vontade pra diminuir o volume do rádio e atender aquele cliente pentelho que provavelmente não vai comprar é porcaria nenhuma. Ele se levanta e vem vagarosamente até meu lado. Olha o livro um pouco e decide o preço na hora, que diz para si mesmo.
– Esse aí era especial. Uma vez ao mês. 25 reais.
Eu achei o preço razoável; nem caro nem barato. Enquanto penso com meus botões sobre o preço e sobre o que ele acabara de dizer, ele lentamente volta ao banco para se reatar com as raízes da grande árvore que certamente passavam pela cadeira e finalmente o envolviam. Ele precisava sempre voltar.
Eu decido fazer uma experiência. Já que meu aparente interesse no livro não é o bastante para fazer esse senhor me dirigir a palavra direito, talvez o dinheiro seja. Finjo pensar mais um pouco e de supetão movo a mão até o bolso de trás para pegar a carteira. Esse movimento não passa despercebido pelo homem, que finge não ter parado de ouvir plenamente seu rádio por uma fração de segundos. Tiro a nota de 20 que claramente não é suficiente. 
– Faz por 20?
– Não – foi tudo que ele disse. Eu titubeei por um segundo, mas insisti.
– Por que não? Esse livro é especial para o senhor? O senhor falou algo como de uma vez ao mês... O senhor o lia uma vez ao mês?
– Não eu. Eu não. Não gosto de ler – diz ele já perdendo a paciência.
 Mas a minha curiosidade coça mais do que a pressão de não me atrasar para o trabalho. Bem mais.
– Então quem? Seu filho? – eu questiono mais uma vez, dessa vez me sentindo na defensiva para o que viria. Ele olha pra mim, para o livro. E volta a olhar para si.
O “vai, pode levar por 20” dele que se seguiu até seria uma vitória para mim se eu agora não tivesse nas mãos um mistério maior do que o que eu tinha antes de sair do metrô.
Eu pago o dinheiro a ele, que o recebe de forma inteiramente mecânica, com um movimento de virar-se para trás da cadeira para pegar a pochete de dinheiro que, reparei, ainda estava vazia naquela manhã. Da mesma forma que pegou, ele a dependurou de volta nas costas da cadeira branca e enferrujada. E voltou-se para frente e para o rádio.
Guardo o livro na mochila e acendo o celular para constatar que ainda não estou terrivelmente atrasado para o trabalho.
– E esse aqui? – pergunto logo em seguida.
 Era uma versão bem pequena e de bolso de Alice no País das Maravilhas, esse em inglês. Ele impacientemente se voltou para mim e depois para o livro. Levantou-se, pegou-o da minha mão e virou de costas. Pude observar que ele foi direto ao fim do livro e havia um certo manuscrito lá. A letra era claramente feminina. Havia até mesmo um coração desenhado e uma cara de gatinho também.  Ele fechou o livro e eu fingi que não tinha olhado.
– Esse eu não vendo, perdão. Não sei por que tava aí.
– Por que não? É seu? – indaguei, sem a menor timidez.
– Não, não é meu, não – ele murmurou, como quem falava consigo mesmo e jamais com outro ser humano.
– Com licença, o jogo do Flamengo tá pra começar. Fique à vontade – e se sentou, dessa vez com o pequeno livro surrado de capa verde com letras douradas sobre a coxa, que cruzara sobre a outra perna ao se sentar.
Nesse ponto eu já estava praticamente dado por vencido. O homem não iria compartilhar a história por trás daquele livro por nada no mundo e talvez nem a do que eu acabara de comprar. Talvez fossem da mesma pessoa. Talvez algum conhecido dele. Eu não saberia e era hora de ir trabalhar. Parte do mistério estava solucionado, pelo menos. Com um aceno de cabeça eu me despeço dele e meu corpo se vira para a direção do trabalho.
– Do seu ela gostava muito – ele me interrompe sem qualquer tipo de peso na consciência. Eu não me importo nem um pouco.
– Ela lia todo mês, não sei como aguentava.
Eu me viro e me aproximo sem falar nada, percebendo que ele ainda não havia terminado.
– Ela tinha dois desse, olha ali – e apontou para uma versão maior e mais enfeitada do mesmo Grandes Esperanças, do Dickens. Não era um livro comum de se ver por aí. Eu continuo em silêncio.
– Ela adorava esse Dicke, Dickens aí. – ele irrompeu do silêncio.
– Sua filha? – emendei.
Percebi pelo silêncio dele que talvez tivesse ido longe demais. Mas ele encontrou vontade para falar. E falou.
– Não tive filha. Nem filho. A gente nunca gostou da ideia de ter filho, não.
– Sua mulher, então?
Nesse momento ele tirou os olhos de si mesmo e me olhou pela primeira vez do alto de sua baixa cadeira, com um semblante que misturava orgulho e dor.
– A única.
Após alguns segundos, eu voltei a mim e olhei ao redor. Vi que havia uma cadeira dobrada atrás da barraca. Me dirigi a ela, olhei para o homem, que imediatamente me concedeu permissão de usá-la, sem precisar usar as palavras.
Abri-a de frente para ele e sentei-me, a banca de livros livre para quem quisesse se aproximar. Ele prosseguiu.
– Ela tentou me fazer ler esse livro aí mas não era pra mim, não. Nunca gostei de ler, não. Não tenho paciência. Sempre gostei da TV e do rádio, entende?
Fiz que sim com a cabeça. 
– Ela lia muito?
Ele riu consigo mesmo, quase como se eu tivesse contado uma piada.
– Se ela lia muito? Olha essa banca. Já vendi metade do que ela tinha.
Era possível contar ao menos cento e cinquenta livros ali. Talvez duzentos.
– Ela não parava. Era viciada nesses livros. Lia pra descansar, pra chorar, pra rir, lia pra tudo, ela.
A hora do meu trabalho já havia passado e eu já havia pensado na desculpa no dia seguinte. Meu lugar, pelo menos naquele dia, era ali, em meio aos apressados, aos vendedores de Halls e Mentos de voz esganiçada, das bancas de sapatos falsificados e da dona que faz bolo e café com leite pra quem sai de casa esbaforido sem tempo de tomar café. E do vendedor de livros que finalmente tinha o rádio no chão, e não mais no ouvido.
– Vocês eram casados há muito tempo?
– Ihhh, bota tempo nisso. 30 anos tá bom pra você? – ele disse, usando expressões faciais que eu jurava que ele nem conhecia.
– Não sei até hoje o que ela viu em mim, estudada do jeito que era, elegante do jeito que era. Eu que nunca passei de um servente de pedreiro a minha vida inteira.
As mãos demasiadamente grandes, provavelmente achatadas pelas décadas de pás pesadas de cimento certamente denunciavam a carreira árdua. A pele bronzeada e os pés grosseiros e rachados eram como um cheque-mate do currículo profissional.
– Mas ela viu algo em mim mesmo e nunca ligou de fazer mais dinheiro que eu e nem de saber falar melhor que eu – ele disse, orgulhoso.
– Professora de faculdade, ela era. Dava aula de literatura inglesa, adorava o tal do Sheiksp, acho que  é isso, levei tempo pra decorar. Dava aula ali na PUC – disse apontando com todo o braço na direção da faculdade. E continuou.
– Última vez que eu fui na PUC visitar ela os seguranças até me olharam torto na entrada, quase me barraram mesmo, entende? E eu me senti tão mal que nem fui mais lá de novo não, entende? Mas ela era linda. Muito elegante mesmo, sempre no salto alto, falava bonito à beça.
O homem tinha o rosto cada vez mais iluminado. E eu estava cada vez mais inclinado em sua direção.
– Uma vez ela me comprou um ternão caro assim, sabe, daqueles que você vê  no shopping com um ator famosão, bonitão. Tinha um casamento de um amigo dela da faculdade, um professor de alemão, muito inteligente o seu Maurício, muito mesmo. A gente comeu e bebeu até se entupir, e ela me apresentava com todo o orgulho do mundo pros professores ricaços “Esse é meu marido, o Joaquim.” Era Joaquim pra lá, Joaquim pra cá.  Eu fiquei todo bobo, de verdade mesmo. A gente dançou tanto e comeu tanto, eu me fiz mesmo foi na parte do forró.
– O senhor dança forró?
– Eu que ensinei ela a dançar forró, meu filho! Tinha que ver, só dava a gente. E isso foi só há três anos atrás, não é coisa antiga, não. Tem coisa que a gente nunca esquece, sabe? Essa festança eu nunca vou esquecer, não.
– Então quer dizer que vocês eram dois dançarinos natos? – perguntei, já num tom brincalhão porque reconheci a abertura para tal.
– A gente adorava. Eu sempre fui sem vergonha desde caçotinho, era o diabo. Mas ela era muito reservada, sabe. Ô, mulher contida! Só dançava comigo por perto. A gente era o oposto nisso e em mais um monte de coisa. Eu brabo e ela calma. Eu impaciente e ela lá pra me acalmar. Mas dançava, de tanto eu insistir ela aprendeu a dançar como quem tinha o sangue nordestino nas veias!
Ele a essa altura não iria parar de falar nunca, parecia. E eu estava adorando cada segundo.
– Quando ela dançava... meu filho, quando ela dançava... Aí, era aí que eu via como ela nunca envelheceu, sabe? Do jeito que dançava aos 20 dançava aos 50. Até melhor aos 50; ela dançava mais solta, sabe? E a gente viajou pra tudo que é canto, viu? Ela sempre bancou nossos bate perna. Já conheci até a Europa todinha, sabia? Você já foi na Europa?
Antes que eu pudesse responder, ele continuou. Nunca foi uma pergunta. E ele seguiu, contando literalmente nos dedos os país visitados, com todo o orgulho sertanejo à flor da pele e o sotaque potiguar, que reconheci da minha própria mãe, mais aguçado do que nunca. Cada país recebia sua própria ênfase exagerada na fala do vendedor.
– Espanha, Alemanha, Itália, Suécia, França e até pros lado lá dos cafundó da Ásia. Tailândia, Indonésia tudo isso aí a gente foi. Esses livro aí da esquerda ela comprou tudinho na Turquia.
– Tá rindo? – ele me censurou de leve – A gente viajou tudo, meu filho! Lá na Turquia tinha uma bibliotecona lá e ela quase ficou sem dinheiro de passagem pra nós voltar de tanto livro que a bichinha comprou.
Ele riu consigo mesmo e suspirou por um segundo, contemplativo, e logo prosseguiu.
– Como a gente amou. Como a gente viveu. Ô, tempo que não volta mais. Muita tristeza, sabe? Mas ó, tô triste agora, mas é só agora, contando isso tudo, viu? Porque nós fomos muito felizes, meu filho, mas muito felizes mesmo.
– Qual era o nome dela? – eu perguntei quando tive a oportunidade.
Joaquim, eu eu sei como gravei o nome dele em meio a tanta conversa, se balançou um pouco na cadeira, ainda com a mente nas histórias dos dois. Ele se levantou, dessa vez com muito mais energia do que antes. Passou por mim, pediu licença, e pegou em sua mochila surrada um livro pequeno e vermelho, de Clarice, e deu na minha mão, para que eu visse o nome por mim mesmo. Enquanto ele se sentava novamente, descobri no livro uma dedicatória. Por respeito ou pressa, decidi não lê-la: li apenas o nome da mulher. A letra não tinha mais tanta firmeza, aparentemente. Era como de criança que ainda não havia atingido domínio da escrita. Pensei por um segundo e voltei a fechá-lo. Eu o mantive perto de mim pelo resto da conversa.
– Esse aí eu ela me deu no nosso aniversário de 30 anos. Ano passado. Esse eu até li porque ela pediu. Achei bem bonito, tinha uma menina nordestina como eu, mas não tive paciência pra ler outro, não. E nem quis. Muito triste.
Era uma versão rara de A Hora da Estrela, provavelmente edição limitada.
Ele prosseguiu.
– Foi alegre até o fim, a minha lindona, sabe? Lutou como até eu mesmo, surrado de sol e concreto a vida inteira, não teria conseguido lutar, vish, mas nem perto disso! Doença maldita! Ela nunca perdeu o sorrisão que fez o Joaquim de 25 anos cair apaixonado, eita! Gamadinho! Lá na época que tinha acabado de sair do ônibus do Nordeste e descido aqui nessa cidade. Quem diria que a filha da patroa seria tão linda? – ele cantou, voltando a olhar para si e não mais para mim.
Ele tirou do bolso um caderno preto, sem letras na capa, bastante fino e de páginas ainda brancas. Ele o pôs na minha mão, colocando a dele sobre a minha por um breve momento.
O caderno possuía manuscritos de três anos atrás, até mais ou menos um ano. Eram ideias. Títulos de poesias, nomes para romances, ideias de personagens, autores para estudar, possíveis rotina para escrever. Havia até mesmo pedaços de contos que claramente ainda precisavam e seriam finalizados por ela. Um desses contos se chamava Joaquim.
– Sempre quis escrever, a minha branquelinha. Nunca achou tempo, trabalhava tanto. Fica pra você – ele me disse.
Nessa altura o caderno já era meu sem que ele soubesse, pois o batismo pela lágrima era um batismo inviolável. Enquanto me afastava, lentamente, pude perceber de relance o homem voltando a cruzar as pernas, inclinando-se para o lado para pegar seu rádio do chão e pôr ao ouvido. Seus olhos viraram para dentro de si uma vez mais, mas o sorriso era novidade.

domingo, 16 de abril de 2017

Sobre as notícias

Enquanto atravesso a sala da casa que não é minha para escovar os dentes e dormir logo após, tão discretamente quanto posso, o apresentador do telejornal me repreende, forçando-me a parar instantaneamente onde estava. Ele precisava da minha atenção. Sim, era comigo mesmo, e era grave. Falava sobre a tensa relação entre Estados Unidos e Coreia do Norte. Falava em "não aperte esse botão que logo aperto o meu" e dava todo o devido contexto para tal coceira de dedos indicadores e botões vermelhos brilhantes encapsulados por pequenas caixinhas de vidro.
Já era sabido há alguns meses que o novo presidente dos EUA com nome de desenho da Disney flertava com tudo relacionado a armas e explosivos, mas ouvir de um programa TV que um certo país comunista do extremo oriente "devastaria os EUA sem piedade se detectasse um ataque preventivo em suas terras" era no mínimo de congelar a espinha. A expressão não muito profissional de espanto no rosto do apresentador já dizia tudo. "E agora, esportes".
Ao voltar a mim, percebo meus sogros no sofá em formato de L, em frente à TV. Ele, dormindo com os anjos. Ela, dando risadinhas ao enviar mais uma mensagem engraçada no celular para a família. E eu... Bem, eu já não sei se quero voltar a me mover.

domingo, 28 de junho de 2015

Ponto Cego

Enquanto meu corpo atravessa a roleta do metrô, a cabeça permanece no trabalho. Planilhas, desktop com o mesmo papel de parede, chefe indigesto, piadas constantes dos colegas. A cada dia que passa me pergunto mais se isso é realmente o melhor que posso fazer com metade do tempo que não passo dormindo. Na realidade, cravo uma batalha quase letal com a ideia de que, de fato, seja. Não é. Não pode ser.
O som do metrô chegando na estação evapora boa parte desses pensamentos instantaneamente. O anúncio de que estarei em casa em cerca de cinquenta minutos é como uma recompensa por ter sobrevivido a mais um dia naquele inferno empresarial. Finalmente terei a chance de ir pra casa e descansar um pouco. Gostaria apenas de não me sentir mal enquanto não estou na firma por não ser produtivo, mas acho que meu cérebro já virou algum tipo de macaco treinado de rua que só se sente bem trabalhando. Que vida.
Entro no vagão e não me surpreendo com o fato de não haver nenhum lugar livre para me sentar. Na realidade, surpresa seria se houvesse. Acho que devo me considerar sortudo apenas pelo fato do metrô não estar estupidamente lotado. Recosto-me a uma parede qualquer, que tem a cara da depressão e do cansaço, apesar da propaganda extremamente colorida e alegre daquela grande rede de supermercados. Coloco a maleta entre os pés e tento me desligar um pouco da realidade para tentar fazer com aqueles quarenta minutos de viagem se transformem em dez, ou talvez vinte. Qualquer redução já seria lucro, pra ser honesto.  
Algumas estações à frente, como de costume, surge a oportunidade do descanso. Sento-me no banco mais próximo de mim, deito a maleta ao colo e é quase possível sentir, nesse momento, os músculos de todo o meu corpo se relaxando e minha mente se esquecendo de que existe. Após alguns momentos assim, porém, uma menina entra correndo quando o metrô para numa estação qualquer e sequestra minha atenção. Ela voa em direção ao banco vazio entre a senhora que parece ainda mais cansada do que eu e o rapaz com um Beats nos ouvidos, provavelmente viajando numa dimensão diferente da nossa. Quando ela finalmente se senta a partir de um salto, como se aquilo fosse uma grande conquista pessoal – se bem que, pensando melhor, eu até que me identifico com a sensação –, percebo que seus pais estão com ela e, por andarem em velocidade normal, só agora a alcançaram.
– Stephane, me diz: pra que correr tanto? – reclama a mãe.
– Bebê, você sabe que não é pra fazer isso, né? Você podia ter se machucado feio – diz, bem mais calmo, o pai. – E agora levanta pro senhor cego ali se sentar, vamos.
– Mas pai! Tem um lugar ali pra ele! – ela aponta com um bico e inclinando o corpo pra frente, o lugar a que se referia.
O homem cego em questão devia ter uns sessenta anos, era negro e tinha dreadlocks que iam quase até sua cintura. Usava uma jaqueta de cor caramelo, uma calça cargo verde e sapatos mocassim pretos. Ele se encontrava em pé segurando-se à haste de metal vertical, segurando também sua bengala. Apesar do banco vago e de todos ao seu redor insistindo para que ele se sentasse naquele lugar que alguém prontamente liberara para ele, o cego preferia permanecer de pé. Todos já pareciam – relutantemente – de acordo com sua decisão, com exceção do homem que estava sentado ao lado da banco vazio. Ele devia ter uns cinquenta anos, era pardo e tinha rosto de quem trabalha muito, e pesado, mas a feição alegre e toda aquela energia positiva pareciam apontar na direção oposta. Vestia uma camisa do flamengo, bermuda branca e chinelos havaiana azuis. Quando menos espero, ele, que acompanhava a comoção de perto, se levanta e vai de encontro ao cego. Ao chegar ao lado dele, começa:
– Senta ali, meu parceiro. Tem lugar. A moça ali levantou pra você, né, moça? – diz o flamenguista, buscando o olhar da mulher que cedera o lugar, como que esperando que o cego também olhasse para ela.
– Não, não precisa, não. Tô bem aqui, obrigado – o cego se manifesta, finalmente, com um sorriso sem graça de quem está recebendo mais atenção do que gostaria.
– Que isso, meu parceiro! Vamo lá, vai ficar aí em pé, não; cê pode se acidentar. Vem, eu te ajudo – diz o outro, já segurando o cego pelo braço e tentando puxá-lo para o banco livre. A essa altura o homem cego não pareceu ter muita escolha que não seguir a sugestão um tanto quanto compulsória, porém bem intencionada, do outro homem. Provavelmente já havia se acostumado com pessoas dividindo o mar vermelho para oferecer uma ajuda de que muitas vezes ele nem mesmo precisava. E foi com ele.
– E aí, meu amigo, pra onde você tá indo? – pergunta o flamenguista quando os dois se sentam.
– Vila Isabel. Tô indo visitar minha filha e o filho dela; meu neto. Nasceu essa semana – replica o cego, ainda um pouco desconfortável.
– Ô loco, de verdade? Que isso! Felicidades, meu irmão! – mostra-se surpreso o outro rapaz, rindo e sorrindo muito.
– Obrigado – responde sorrindo o cego, apoiando com as duas mãos a bengala pelo topo, demostrando certa inquietação positiva ao pensar no neto, que julguei ser seu primeiro. – Antônio, o nome dele – completa, inclinando-se levemente para o lado para certificar-se de que o outro ouviria o nome com clareza.
– Antônio?! Meu nome é Antônio! – responde o flamenguista, quase num grito, atraindo para si a atenção de metade do vagão. Seus olhos estavam arregalados e fitando o cego, numa expressão de total surpresa. Admito que nesse momento eu tive que me segurar para não começar a rir e parecer um louco desvairado. Eu nem deveria estar ouvindo a interação daqueles dois pra início de conversa, se for parar pra pensar.
– Sério? Caramba, mais que coincidência! – responde o dono dos dreads, genuinamente surpreso.
– Sério, pô! – diz o outro, coçando a cabeça e ainda com a cara de bobo – Nossa, que doideira, parceiro.
– É verdade – responde Joaquim, rindo um pouco por conta do tom de voz de total perplexidade do homem.
– Mas e seu nome, meu amigo? Qual é? Como que tu chama? – pergunta Antônio.
–  Joaquim – responde o cego, com um aceno de cabeça.
– Joaquim? Tipo o filho da Angélica e do Luciano Huck? “Loucura, loucura, loucura!” – imita Antônio, com uma taxa não muito alta de sucesso.
– Isso, isso mesmo – responde Joaquim entre risos. – Só que sem o cartão de crédito ilimitado – brinca, exibindo aos poucos seu próprio senso de humor.
Antônio solta uma gargalhada que atrai novamente a atenção da maior parte das pessoas ali. Ele realmente não parece se importar nem um pouco com o que os outros passageiros pensam dele.
– Caraca... Nossa, até chorei aqui – diz Antônio, enxugando os olhos com a camisa, expondo sem preocupações a barriga de cerveja. Joaquim ri.
– Ai, ai... Tu é demais mesmo, viu. Mas me diz, tu trabalha, Joaquim? – pergunta Antônio, ainda tentando voltar a seu estado normal.
– Trabalho. Sou fotógrafo – responde Joaquim. E   após sentir a confusão de Antônio, que não respondeu nada em 5 segundos, Joaquim continua – Tô brincando!
– Porra, Joaquim! – reclama Antônio, tentando segurar o riso. – Eu achei que fosse sério!
– Só queria ver sua reação, parceiro – diz Joaquim, agora já rindo sem qualquer de tipo de timidez. – Viu só? Ver sua reação. Tô brincando de novo – ele completa.
– Como tu me faz uma coisa dessa, Joaquim! – responde meio exasperado Antônio. – Eu tenho sentimentos, irmão.
– Ok, ok, não fica assim – diz Joaquim, dando uns tapinhas nas costas de Antônio, que agora sorria como quem ria, a forma de sorriso mais genuína que já vi em seres humanos.
Nesse momento eu percebo que aquela interação entre os dois homens que literalmente acabaram de se conhecer estava sendo tão hipnótica para mim que eu já havia me esquecido de todo o meu estresse. Esqueci também do cansaço, esqueci que meu chefe é o ser humano mais detestável do mundo, esqueci do trabalho que estou levando pra casa na maleta. Que mágica estaria acontecendo? Seja lá o que fosse, aquilo estava tendo em mim efeito terapêutico.
Próxima estação: Afonso Pena. Desembarque pelo lado direito. O anúncio indicava que minha hora de descer se aproximava. O que normalmente me traria um grande alívio, hoje me deixou um pouco entristecido. Eu simplesmente não queria parar de observar aqueles dois, por mais intrusivo que isso possa parecer. Após alguns nesse pequeno embate, decido voltar a escutá-los enquanto ainda podia.
– Meu amigo Joaquim, se você pudesse ver a moça de vestido branco justinho que tá ali perto da porta.... Meu deus do céu – fala em tom de encanto Antônio, que a essa altura já está com o braço apoiado nos ombros de Joaquim, como se os dois fossem velhos amigos.
– Pô, não me fala uma coisa dessas, meu amigo. Assim eu fico triste – responde Joaquim, levando uma das mãos à cabeça, sempre de bom humor.
– Ah, se eu não fosse casado... – diz Antônio, olhando para a mulher.
– Ih, assim não vai pro céu – brinca Joaquim.
– Se é pelo não cobiçarás a mulher do próximo, eu já tô é condenado há muito tempo, meu amigo! – diz entre gargalhadas Antônio, e Joaquim segue, gargalhando tão intensamente quanto. A única diferença entre o metrô e a mesa de bar nesse momento é a ausência da mesa com uma garrafa de cerveja e do pagode ao fundo.
Joaquim levanta o dedo no ar ao ouvir o anúncio da próxima estação, que é a sua. Ele comenta com Antônio que vai precisar de uma ajudinha pra encontrar a porta do metrô e pede o auxílio de seu novo amigo. Este, prontamente se levanta e ajuda Joaquim até a porta da estação do metrô. Antônio se despede do amigo com um tapinha nas costas deste, que retorna o gesto. Quando as portas finalmente se abrem e Joaquim desce da composição, Antônio parece pensativo. Após cerca de cinco segundos, ele resolve sair também do metrô para acompanhar seu novo amigo e provavelmente evitar que uma amizade como aquela termine de forma tão prematura.
Minha estação é a próxima. Sinto um pequeno vazio que de nenhuma forma é ruim. Finalmente me levanto e dou uma última olhada rápida para os bancos vazio daqueles dois, como se eles ainda estivessem ali às risadas. Como é possível uma conexão como essas se consolidar tão rapidamente? A maioria das pessoas leva anos pra criar uma amizade e esses dois conseguiram isso em cinco minutos. Sinto como se meus próximos dias agora não fossem ser necessariamente ruins. Como se todas aquelas viagens de metrô agora tivessem algum tipo de propósito, que eu não sabia exatamente qual era. Talvez ir para o trabalho todos os dias não seja uma ideia tão dantesca, afinal de contas.


sábado, 18 de abril de 2015

Mães, filhos e demônios

São 4h da tarde. Dona Olga, ex-contadora de descendência judia em seus 82 anos bem vividos, faz compras no mercadinho que frequenta há mais anos do que consegue numerar. Seus cabelos louros, recém tingidos e com um penteado feito exclusivamente para a data especial, era motivo de orgulho naquele dia. Suas vestimentas, em contrapartida, eram simples. Usava um vestido florido, que sempre vestia para ir ao mercadinho, pois aquelas flores a faziam sentir-se em harminoa com aquela natureza rica de frutas, vegetais, cores e texturas. Isso a deixava feliz e tranquila. Contribuindo com essa tranquilidade, tocava Mozart no local; algo que, ainda que inusitado para novos clientes, não espantava D. Olga. Ela conhecia o gosto para música clássica do dono do estabelecimento, que sempre colocava os grandes – Mozart, Chopin, Vivaldi – para seus clientes ouvirem, algo que nunca pareceu incomodar ninguém. Dona Olga que o diga, pois estava agora gesticulando com uma mão ao compasso da sinfonia, de frente para compartimento de tomates, certificando-se de fazê-lo de forma discreta, pois detestava ser o centro das atenções. Com a mão quieta apoiava a sacola com os tomates que havia selecionado para o peixe ensopado do aniversário do filho, Miguel, que completava 36 anos naquele dia.
Enquanto isso, aproxima-se da seção dos tomates um homem muito elegante, que imediatamente reconhece D. Olga. É Marcos Friedman, seu antigo colega de escritório. Era e é um homem muito culto e possuidor de um grande fascínio em se vestir bem, comprando sempre as roupas mais caras que seu orçamento permitia. No entanto, o que lhe sobra de requinte, sobra também de humildade e extroversão. Marcos  coloca a mão no ombro de dona Olga e a cumprimenta.
– Olguinha! Quanto tempo, Olguinha! Como você está? – pergunta o homem, muito  entusiasmado.
– Não acredito! Marcos Friedman! – replica Olga e aproxima-se para o abraçar.
– Quanto tempo faz? Uns dez anos que não nos vemos? Talvez quinze? – o homem pergunta, ajeitando de forma quase automática o smoking, que parecia novo em folha, após o abraço caloroso.
– Olha, se minha memória não me falha – coisa que ela tem feito bastante recentemente – a última vez que nos vimos foi no seu casamento com a Bertinha. Há dez anos atrás – diz ela, com um sorriso dos mais genuínos no rosto.
– Acho que você está certa, Olguinha. Por falar nisso, a Berta sente bastante saudade de você; ela ia adorar te ver aqui – nota Marcos,  agora já com o chapéu estilo Trilby nas mãos.
– Ah, quantas saudades eu sinto da Bertinha, minha amiga. – ela diz, olhando para o chão, por um momento – E agora que estou me lembrando. Vocês se conheceram através de mim, não é verdade, Marcos? – ela pergunta, apenas esperando uma confirmação.
– Está certa novamente, Olguinha – e sorri. –  Se você não tivesse me levado à sinagoga Shel, lá em Botafogo, naquele dia, eu nunca teria conhecido a Berta e construído a minha família linda.
– Ah, eu sabia! – diz e sorri D. Olga, apontando e chacoalhando o dedo para o homem.
– Pois é. Tenho três netinhos, sabia? Dois meninos e uma menina. Lindos, todos lindos – o homem se enche de orgulho ao dizer isso.
– Que maravilha! Você tem alguma foto deles? – ela pergunta, a curiosidade à flor da pele.
– Tenho sim. Olha aqui – diz Marcos, sacando do bolso o celular estilo flip. No entanto, descobre que o aparelho está sem bateria.
– Numa outra oportunidade você me mostra seus pequenos, Marcos. Acontece. – diz Olga, consolando o homem.
– Que situação desagradável. Eu tinha certeza que tinha carregado ele hoje de manhã – lamenta ele.
– Sabe, Marcos. Eu também tenho um netinho. Eduardo, o nome dele. Duduzinho! Coisa mais linda. Tem 5 aninhos – finalmente revela Olga, que estava apenas esperando uma oportunidade para falar do netinho. – Filho do meu filho Miguelzinho.
– Aquele Miguelzinho que ficava na barra da sua saia o dia inteiro na época que trabalhávamos no jornal? – pergunta surpreso Marcos.
– Isso mesmo! Só me dá alegrias, esse menino. Sempre muito apegado a mim, é verdade. Muito tímido também, mas é o jeito dele – aponta Olga, com um leve tom de reprovação. E continua – O filho é a mesma coisa. Apegadíssimo ao pai e a mim. Uma lindeza, benzadeus!
Enquanto conversam, uma mulher se aproxima da porta do mercadinho. Usa um vestido azul marinho bastante justo, sapatos de salto alto, luvas de cetim preto e um chapéu de renda recaindo sobre o rosto, de pele clara e feição jovial. Ela segura uma maleta, também azul, e tem o olhar determinado. A mulher então ajeita a roupa, o cabelo e finalmente adentra o local. Enquanto percorre as fileiras de vegetais com incomparável elegância e imponência, ela parece observar todas as pessoas ali dentro com distinta atenção, como uma espiã de guerra, quando finalmente detecta a presença de Marcos no local. Ela para imediatamente, saca o pulso esquerdo para olhar as horas e o recolhe novamente, o olhar agora fixo no homem, que mal sabe que está sendo observado.
– Lembra quando você pediu demissão do jornal, Olguinha? – pergunta Marcos, mal conseguindo segurar o riso.
– Oh, como eu me lembro! Nesse dia a Marlene aproveitou e se demitiu também. Bebemos alguns drinks em comemoração a nós mesmas – diz a mulher com um ar nostálgico, agora amarrando a sacola com os tomates e rindo um pouco.
– É verdade, Olguinha. Todos vibramos muito por você naquele dia. Realmente inesquecível. O Pablo subiu na mesa e quase foi demitido, lembra? – disse Marcos, suas palavras ainda competindo com as risadas.
– Mas é claro! Como eu me esqueceria? – ela diz, com a mão na cintura – Pablo era muito meu amigo. Viajamos juntos para Bariloche uma vez. Não sei por que paramos de nos falar – Olga olha para cima como tentando se lembrar.
– Mas me diz, Olguinha. Tá bonita! Alguma ocasião especial? – ele dispara.
– Sim! Sim, é o aniversário do Miguelzinho hoje. Eu ainda não tinha te contado? – responde com muita empolgação ela. – Faremos juntos um peixe ensopado com tomates, como todo ano – e balança às vistas de Marcos a sacola de tomates.
– Que maravilha, Olguinha. Muito bom ouvir isso.
A mulher que os observava agora está fazendo uma ligação telefônica pelo celular, sempre fitando Marcos à distância. Ela fecha o aparelho, o guarda em sua pequena bolsa a tiracolo e caminha na direção de Olga e Marcos. Seu andar é o de uma modelo e seu olhar, o de uma leoa prestes a atacar sua presa.
– Mas me diz, Marcos. O que você tem feito durante todos esses anos? – pergunta com empolgação Olga.
– Bom, eu –
– Marcos Friedman. – o interrompe a mulher misteriosa ao se aproximar dos dois.
– Valkíria? Não acredito! – exclama Marcos, que se apressa para abraçá-la, mas ela permanece imóvel, com uma expressão de impaciência.
– Valkíria, irmã da Bertinha? – pergunta Olga, muito surpresa.
– Sim, sou eu. – a mulher pronuncia as três palavras como se fossem uma única, sem ao menos olhar para Olga. Seu olhar está fixo em Marcos. E ela continua.
– Acredito que tenha conhecido o Marcos. – Ela diz, ainda fitando o homem no rosto.
– Sim, ele é o –
– Este homem é procurado pela KGB por atentados à humanidade. Agora que o encontrei, poderei tomar as devidas providências. – Valkíria informa, quase de forma robótica.
– Quem? O Marcos? Um terrorista? Você só pode estar brincando – diz entre risadas Olga.
– Sim. Ele mesmo. Ele é acusado de ter detonado uma bomba numa escola primária em Minsk, na Bielorrússia, no mês passado. – Ela diz, sem a menor alteração no tom de sua voz.
– E o que você vai fazer? Me prender? – desafia Marcos, visivelmente abalado.
– Esse é o plano. Contarei com a ajuda do Alberto para isso. – Revela a mulher, e vira a cabeça para mirar o gerente.
Seu Alberto Shmidt, o gerente do mercadinho, é um rapaz baixo e de rosto muiro alegre de quem ama seu trabalho. Suas calças pretas e camisa social branca dobrada à altura dos cotovelos, assim como o walkie-talkie preso ao cinto, condizem inteiramente com aquele cargo, que orgulhosamente ocupava há tantos anos naquele mercadinho. Ao terminar de ajudar uma cliente a encontrar os cestos para compras, ele repara a mulher acenando para que ele se aproxime e imediatamente sente-se um tanto quanto intimidado, pois não tinha contato com mulheres tão atraentes com frequência. Ele então endireita a coluna, dá um pigarro para limpar a garganta e passa a mão no cabelo de súbito, numa tentativa de estar em sua melhor forma possível para executar a missão requisitada pela mulher, que certamente não era qualquer cliente.  Ele então dirige-se até ela.
– Pois não, senhorita. Posso ajudá-la em algo? ­ – ele pergunta e dá uma piscadinha nada discreta para Valkíria.
– Pode sim. – Ela responde. – Já está na hora.
– Ah, sim. Já está tudo pronto, Srta. Valkíria – informa Alberto, tentando esconder seu nervosismo evidente.
– Excelente. – E vira-se para Olga. – Pode ficar de olho nele para mim, Olguinha? – diz Valkíria olhando pela primeira vez para Dona Olga, no que estava longe de ser um pedido, mas sim uma ordem.
Antes que Dona Olga pudesse responder, a mulher vira-se e começa a caminhar em direção à saída do mercadinho. Seu Alberto a segue prontamente, tentando despedir-se, de forma muito atrapalhada, de Olga e Marcos.
–  Isso está me cheirando muito mal, Marcos – sussurra Dona Olga para o homem, que a essa altura não está mais prestando atenção nela, preocupado com outros assuntos.
Seu Alberto conversa sobre algo Valkíria ao chegar à saída do mercadinho, onde ela já estava, olhando ocasionalmente para D. Olga e Marcos. Após muitos acenos por parte dele, Alberto retorna ao seu posto, perto dos caixas do local, enquanto Valkíria permanece no mesmo lugar.
– Eu sou velha conhecida do seu Alberto, Marcos. Vou tirar isso a limpo – informa Olga a ele – Você fique aqui, não quero que nada aconteça com você – pede a mulher, segurando de leve o ombro  de Marcos enquanto deixa sua companhia em direção a Alberto. Ela então segue até ele, que agora está pálido e suando demasiadamente.
– Olá, Albertinho – Olga o cumprimenta, com uma expressão que mistura afeição e desconfiança. – Posso parecer intrometida, mas o que aquela mulher falou pra você? Vocês têm algum plano? – inquere.
– Olá, Dona Olga. Algum problema com as compras? – Ele pergunta, como se não tivesse ouvido D. Olga. – Ah! Já viu que estamos com uma promoção nas cenouras? Pela metade do preço! O caqui também está em promoção! Eu, se fosse a senhora, aproveitaria – e dá uma risada de leve, o suor ainda correndo pelo rosto de pele parda. Ao perceber a evasão do assunto, Olga despede-se de Alberto com um sorriso e ruma em direção à mulher elegante atrás de respostas. Antes disso, porém, Alberto segura-lhe o braço e fala muito baixo, num sussurro:
– Seu filho está em perigo, dona Olga. Isso é tudo que posso dizer – Ele alerta, trêmulo – Eu realmente não posso falar mais nada sobe isso, mas talvez a srta. Valkíria possa – E, olhando timidamente para o chão, solta o braço de dona Olga, não sabendo como conseguiu fazer algo que ele consideraria tão ousado.
 Dona Olga o olha com se estivesse vendo a morte em pessoa. Após alguns segundos, ela ruma abruptamente e sem dizer nada em direção à mulher misteriosa atrás de esclarecimentos. Valkíria está na porta do mercado, expelindo, para o alto, fumaça da boca, proveniente do cigarro preso a uma piteira, que segura com elegância ao lado do corpo. Ela não está mais com a maleta. Olga anda até ela, mas um susto faz com que ela pare de súbito. Há muita gritaria e tumulto do lado de fora do mercadinho. Após alguns segundos de gritaria e corre-corre das pessoas na rua, para todos os lados, três homens adentram o local, todos encapuzados. Dois deles estão com espingardas e um deles, com um facão corroído por ferrugem. Dona Olga permanece imóvel, os olhos arregalados, e dá um pulo quando eles cortam aquele silêncio de repente.
– Todos quietos! Agora nós somos os donos desse local! Se vocês não ficarem quietinhos, a gente vai botar pra quebrar! – anuncia um dos três bandidos, apoiando a carabina sobre o ombro. E continua – Eu e meus amigos aqui fomos informados de que há uma tal Dona Olga neste estabelecimento. Quanto antes ela se apresentar, melhor para todos – ameaça.
Dona Olga olha para o gerente, que olha para ela de volta. Ele agora possui uma expressão muito mais tranquila do que antes, quase como se nada estivesse acontecendo. A mulher não sabe o que fazer e, aos poucos, começa a recuar, de costas, em direção ao local em que conversava momentos antes com Marcos. Porém, para sua surpresa, ele não está mais lá ou em qualquer outro ponto do mercadinho.
– Valkíria, venha cá – ordena o bandido à mulher elegante, que manteve-se absolutamente tranquila durante todo o tempo. Ela apaga o cigarro com o sapato e segue em direção ao bandido, que parecia ser o líder do bando.
– O Miguelzinho, Valkíria. Eu sei que a mãe dele está aqui, mas quem a gente quer é o filho dela.
– Miguelzinho está em casa. – diz a mulher, com sua constante cara de desprezo e nojo.
– Bom, e onde diabos fica essa casa, Valkíria? – replica o bandido, sua paciência aos poucos se esgotando. Ao ouvir tudo isso, Dona Olga entra em completo desespero. O que poderiam aqueles homens querer com seu filho? – Um garoto tão bom e certo, nunca fez mal a ninguém! Ele nunca estaria envolvido com bandidagem! – ela pensava nervosamente. É somente um tiro que interrompe seus pensamentos desesperados. O bandido havia matado Valkíria com um tiro na barriga e agora estava acenando para seus comparsas para que o acompanhassem em direção ao interior do mercadinho. Eles param ao lado dos caixas e o líder novamente se pronuncia:
– Dona Olga, nós sabemos sobre seu filho. Hoje é aniversário dele, né? Dê a ele meus parabéns. – diz o bandido, virando-se para olhar para seus comparsas com um sorriso demoníaco. – Mas hoje é o último dia de vida dele, porque nós o apagaremos da face da Terra – o bandido fala em tom calmo, ao contrário do que se pudesse esperar daquela situação. Ele olha para todas as pessoas no local, tentando identificar a mulher que buscavam. E prossegue. – O filho dele, Eduardo, o Duduzinho! de 5 anos. Seu neto, dona Olga. Nós o mataremos também. Que tal? Gostou da ideia? – termina, agora rindo muito alto com seus comparsas. Olga finalmente quebra o silêncio.
– Estou aqui! Eu sou a Olga e vocês podem acabar com a minha raça, mas deixem meu filho e meu neto em paz, seus cachorros! Animais! – ela brada, olhando ao redor em busca de algo para se defender, muito trêmula. Os bandidos então começam a avançar em sua direção. O do facão aproveita a oportunidade para degolar Alberto com um único golpe no pescoço, que cai imediatamente. Os outros dois continuam em direção a Dona Olga, que agora empunhava um rodo azul que encontrara perto da porta da área de serviço. Os bandidos agora estão perigosamente próximos de Dona Olga.
– Vocês não podem fazer isso! Eu vou acabar com a vida de vocês! Eu vou matar um por um! Aí eu quero ver como a mãe de vocês vai se sentir! Seus vermes, seus animais! – ela grita com a voz trêmula, fazendo movimentos com a vassoura tão fortes e rápidos quanto a idade permite. Ela para por um instante, o olhar fixo no nada. Então volta a mirar os bandidos e grita – E quem está balançando essas chaves? Estou ouvindo barulho de chaves! O que vocês tão tentando abrir? Hein? – e sacode furiosamente o rodo azul em todas as direções. Então, uma porta se abre sem que dona Olga perceba.
– Pra trás, seus bandidos imundos! Ou eu mato todos vocês, eu juro! – os olhos de dona Olga expressam profundo desespero.
– Mãe! – grita uma voz familiar.
– É você, Miguelzinho?! Se afaste! Esses homens querem te matar, e o Duduzinho também! Pra trás que eu já vou acabar com eles! Pra trás! PRA TRÁS! – grita a senhora, sem desviar o olhar dos bandidos em nenhum momento; estes, já apontando para ela e o filho as espingardas.
– Mãe – diz Fernandinho, colocando a mão no ombro da mãe – se acalme.
– Me acalmar como, Miguelzinho? Esses homens vão te dar um tiro! Um tiro, meu filho! Eu não vou deixar! – e balança mais uma vez o rodo.
Miguel quase tropeça nos tomates no chão da cozinha enquanto tenta se apoderar do rodo que a mãe sacode para todos os lados.
– Mãe, tá tudo bem. Se acalme. Eu já cheguei – diz o filho com muita calma, como quem já havia dito isso centenas de vezes antes. Ele agarra com muito cuidado o rodo da mão da mãe e o coloca em pé junto ao fogão, que está com os botões removidos para que o gás não possa ser ligado pela idosa em sua ausência.
– Meu filho, eles iam te matar! Eu tinha que fazer alguma coisa! – diz Olga com lágrimas nos olhos.
– Tudo bem, mãe. Tá tudo bem – diz Miguelzinho fazendo carinho na cabeça da mãe, que agora tem junto ao peito. E termina – Ei, que tal você descansar um pouco agora e mais tarde a gente faz aquele peixinho ensopado que nós adoramos fazer juntos? – sugere o filho, olhando nos olhos, ainda chorosos, da mãe.
– Mas e os bandidos, Miguelzinho? Eles falaram que vão matar você e o Duduzinho – ela inquere, o tom de voz ainda um pouco exasperado.
– Eles já foram embora, mãe. Fica tranquila – Ele responde e em seguida se abaixa para recolher uma maleta azul que a mãe havia jogado no chão da sala. Ao lado dela estava a foto de um homem de terno, que ele não reconheceu.
Ele então conduz a mãe até seu quarto, esta agora falando sobre o assassinato frio da mulher elegante e do Albertinho do mercadinho, enquanto o filho ouve tudo com naturalidade. Ele deita a mãe em sua cama, a cobre com o lençol e lhe dá um beijo na testa.
– Traz o Duduzinho pra eu ver ele, meu filho – diz enquanto segura a mão de Miguel – Eu tô morrendo de saudades dele.
– Claro, mãe. Claro – diz Miguel, desejando muito que o filho Eduardo ainda estivesse vivo, como na mente de sua velha mãe. Ele se vira, apaga o abajur da mesa de cabeceira e fecha a porta ao sair, suspirante.