quarta-feira, 17 de julho de 2013

Relato sobre a minha morte



Hoje foi o dia em que morri. Mas calma, vou explicar: morri, porém em uma dimensão paralela, não nessa. Tive a visão de meus últimos momentos de vida, no momento em que ocorriam, em uma das incontáveis dimensões existentes, e honestamente não sei o que ocasionou a bipartição entre a dimensão de que escrevo neste momento e a em que morri. Mas elas se dividiram, já que em uma eu morro e na outra meu dia segue normalmente e não ocorre morte. Narrarei a história da perspectiva em primeira pessoa para fins de fidelidade, até porque quem morreu fui eu.

Terça feira, 16:30h. Pego o ônibus para a faculdade, como de rotina. Busco um assento próximo à janela e me sento no primeiro que vejo. Um homem muitíssimo mal encarado e de aspecto um tanto quanto desequilibrado, camisa polo roxa e calças jeans, para próximo ao assento livre ao meu lado e me olha por uns instantes com desconfiança, talvez marcação gratuita. Finalmente o homem se senta, mas ele claramente não foi com a minha cara por algum moivo que eu nunca saberei.

Eu estava um pouco paranoico com aquilo, pois o homem claramente tinha um problema comigo. A paranoia se mostrou justificável, visto que em poucos segundos o sujeito sacou uma faca de cozinha, daquelas de cabo laranja com deformações de queimaduras de fogão, e cravou num movimento súbito entre as minhas costelas. Não tive reação. No momento, tudo que senti foi um aperto no peito e meu coração palpitando como nunca antes. Como reflexo, talvez, eu agarrei o braço dele com a minha mão, que se fechou como um cadeado, fazendo com que ele tivesse problemas pra se desvencilhar de mim. Assim que o fez, gritou para que o motorista “parasse o ônibus agora que ele ia descer”, e desceu. O som dele descendo os degraus me marcou naquele momento por motivo nenhum.

Meu sangue era escuro. Nos filmes, o sangue sempre é bastante claro, e ver que o sangue na realidade é pelo menos três vezes mais escuro causou certa surpresa em mim. A essa altura, as pessoas já estavam me olhando com semblante de horror, empatia, algumas até de puro desespero. Eu já nunca gostei de ser o centro de atenções, ainda mais na hora da minha morte.  Se eu tivesse forças, eu juro que pediria educadamente para me deixarem sozinho. Mas não tinha. Minha camisa preta me impediu de ter uma noção clara do ferimento e do sangramento, mas era razoavelmente lógico que aquilo não era nada bonito. O banco do lado estava começando a ser preenchido com o sangue que escapava por debaixo da minha camisa, por cima do topo das calças. Era um fluxo contínuo, e aquela visão não melhorou particularmente o meu estado mental.

Se bem que, na verdade, tudo naquela situação contribuía para meu desespero, mas ele não aconteceu. Eu fiquei calmo durante todo o processo de morte. Achei até interessante, pois fiz algumas descobertas. Descobri, por exemplo, que numa situação dessas ocorrem calafrios de forma periódica, com curtos intervalos entra cada um. Descobri também que a dor logo passa, sendo a ideia de deixar de viver a pior parte da morte. Nossa fisiologia também funciona de forma semelhante enquanto estamos para morrer. Nosso cérebro bloqueia odores após algum tempo para que possamos nos focar em novos, e isso aconteceu mesmo em meio àquela situação, visto que em pouco tempo eu já era incapaz de sentir o forte cheiro de ferro que emanava do sangue, que a essa altura já havia formado duas poças: uma no banco ao meu lado e uma no chão, que havia se formado sob meus pés.

Uns três minutos após ser perfurado com a faca de loja de “R$1,99” eu já estava começando a perder a sensibilidade de forma generalizada. Visão e audição me abandonavam simultaneamente, aos poucos. Meus óculos não deram conta de corrigir minha visão ali, e tudo já estava embaçando, e aos poucos, dobrando também. Mal conseguia identificar rostos a esse ponto, mas sabia que haviam no mínimo dez deles olhando diretamente para a minha bagunça sangrenta, para o meu estado de total decadência moribunda. Nesse momento eu voltei meu rosto para a janela e observei tudo com admirável comtemplação. Era, afinal, uma despedida de tudo que eu conseguia ver através daquela moldura de ferro, borracha e vidro.  Eu sabia que nunca mais veria carros, pessoinhas andando despreocupadas, árvores ou semáforos. Sabia que meu conhecimento daquelas coisas se perderia para todo o sempre em questão de minutos.

Minha audição também já estava muito, muito mais pra lá do que pra cá. Parecia que haviam colocado um balde sobre minha cabeça, tão distorcidos estavam os sons ­– lamentos e murmúrios dos abutres. O motor do ônibus já estava desligado, o que era justificável já que tanto o cobrador quanto o motorista estavam ali de pé também me olhando. Reconheci pelos uniformes.

“Por que ninguém chama uma ambulância, meu Deus?” berrou uma senhora, claramente desestabilizada. “Tão novo...” escapou não sei de onde, não sei de quem. “Fátima, você tá pisando no sangue!” me fez rir um pouco por dentro, devo admitir.

Sim, por dentro. Não teria forças pra esboçar o mais discreto dos sorrisos após os cinco minutos que calculo que tenham se passado até ali. Minha visão já estava seriamente prejudicada e tudo estava escurecendo muito rapidamente. Parecia que alguém havia apagado as luzes de uma loja de departamentos, onde o lugar vai escurecendo gradualmente, liberando aqueles estampidos característicos. Senti nesse ponto uma extrema fraqueza e pouco depois tombei para frente, batendo forte com o rosto, de lado, na proteção amortecedora do banco dianteiro. Minhas últimas sensações foram um “já era, já era” de um rapaz e o grito agudo de susto e desespero de uma moça, assim como o cheiro azedo da borracha velha e desgastada.

Foi dessa forma patética que eu morri nessa dimensão paralela. Passou na televisão e tudo mais, o que eu achei bastante desmoralizante e desnecessário, principalmente para meus familiares e amigos. Seria melhor saber do ocorrido através de pessoas conhecidas do que pela mídia sensacionalista que adora sapatear nas desgraças alheias; tão ou mais abutres que os abutres que fizeram meu velório improvisado no ônibus, comigo ainda vivo.

Mas está tudo bem! Tudo isso aconteceu em uma outra dimensão, e eu honestamente espero que ainda se passe um bom tempo antes do Boris de uma outra dimensão qualquer narrar a minha morte nesta. E que eu não morra de velhice para pelo menos meus momentos finais renderem um texto agradável de ler depois da faculdade.