domingo, 28 de junho de 2015

Ponto Cego

Enquanto meu corpo atravessa a roleta do metrô, a cabeça permanece no trabalho. Planilhas, desktop com o mesmo papel de parede, chefe indigesto, piadas constantes dos colegas. A cada dia que passa me pergunto mais se isso é realmente o melhor que posso fazer com metade do tempo que não passo dormindo. Na realidade, cravo uma batalha quase letal com a ideia de que, de fato, seja. Não é. Não pode ser.
O som do metrô chegando na estação evapora boa parte desses pensamentos instantaneamente. O anúncio de que estarei em casa em cerca de cinquenta minutos é como uma recompensa por ter sobrevivido a mais um dia naquele inferno empresarial. Finalmente terei a chance de ir pra casa e descansar um pouco. Gostaria apenas de não me sentir mal enquanto não estou na firma por não ser produtivo, mas acho que meu cérebro já virou algum tipo de macaco treinado de rua que só se sente bem trabalhando. Que vida.
Entro no vagão e não me surpreendo com o fato de não haver nenhum lugar livre para me sentar. Na realidade, surpresa seria se houvesse. Acho que devo me considerar sortudo apenas pelo fato do metrô não estar estupidamente lotado. Recosto-me a uma parede qualquer, que tem a cara da depressão e do cansaço, apesar da propaganda extremamente colorida e alegre daquela grande rede de supermercados. Coloco a maleta entre os pés e tento me desligar um pouco da realidade para tentar fazer com aqueles quarenta minutos de viagem se transformem em dez, ou talvez vinte. Qualquer redução já seria lucro, pra ser honesto.  
Algumas estações à frente, como de costume, surge a oportunidade do descanso. Sento-me no banco mais próximo de mim, deito a maleta ao colo e é quase possível sentir, nesse momento, os músculos de todo o meu corpo se relaxando e minha mente se esquecendo de que existe. Após alguns momentos assim, porém, uma menina entra correndo quando o metrô para numa estação qualquer e sequestra minha atenção. Ela voa em direção ao banco vazio entre a senhora que parece ainda mais cansada do que eu e o rapaz com um Beats nos ouvidos, provavelmente viajando numa dimensão diferente da nossa. Quando ela finalmente se senta a partir de um salto, como se aquilo fosse uma grande conquista pessoal – se bem que, pensando melhor, eu até que me identifico com a sensação –, percebo que seus pais estão com ela e, por andarem em velocidade normal, só agora a alcançaram.
– Stephane, me diz: pra que correr tanto? – reclama a mãe.
– Bebê, você sabe que não é pra fazer isso, né? Você podia ter se machucado feio – diz, bem mais calmo, o pai. – E agora levanta pro senhor cego ali se sentar, vamos.
– Mas pai! Tem um lugar ali pra ele! – ela aponta com um bico e inclinando o corpo pra frente, o lugar a que se referia.
O homem cego em questão devia ter uns sessenta anos, era negro e tinha dreadlocks que iam quase até sua cintura. Usava uma jaqueta de cor caramelo, uma calça cargo verde e sapatos mocassim pretos. Ele se encontrava em pé segurando-se à haste de metal vertical, segurando também sua bengala. Apesar do banco vago e de todos ao seu redor insistindo para que ele se sentasse naquele lugar que alguém prontamente liberara para ele, o cego preferia permanecer de pé. Todos já pareciam – relutantemente – de acordo com sua decisão, com exceção do homem que estava sentado ao lado da banco vazio. Ele devia ter uns cinquenta anos, era pardo e tinha rosto de quem trabalha muito, e pesado, mas a feição alegre e toda aquela energia positiva pareciam apontar na direção oposta. Vestia uma camisa do flamengo, bermuda branca e chinelos havaiana azuis. Quando menos espero, ele, que acompanhava a comoção de perto, se levanta e vai de encontro ao cego. Ao chegar ao lado dele, começa:
– Senta ali, meu parceiro. Tem lugar. A moça ali levantou pra você, né, moça? – diz o flamenguista, buscando o olhar da mulher que cedera o lugar, como que esperando que o cego também olhasse para ela.
– Não, não precisa, não. Tô bem aqui, obrigado – o cego se manifesta, finalmente, com um sorriso sem graça de quem está recebendo mais atenção do que gostaria.
– Que isso, meu parceiro! Vamo lá, vai ficar aí em pé, não; cê pode se acidentar. Vem, eu te ajudo – diz o outro, já segurando o cego pelo braço e tentando puxá-lo para o banco livre. A essa altura o homem cego não pareceu ter muita escolha que não seguir a sugestão um tanto quanto compulsória, porém bem intencionada, do outro homem. Provavelmente já havia se acostumado com pessoas dividindo o mar vermelho para oferecer uma ajuda de que muitas vezes ele nem mesmo precisava. E foi com ele.
– E aí, meu amigo, pra onde você tá indo? – pergunta o flamenguista quando os dois se sentam.
– Vila Isabel. Tô indo visitar minha filha e o filho dela; meu neto. Nasceu essa semana – replica o cego, ainda um pouco desconfortável.
– Ô loco, de verdade? Que isso! Felicidades, meu irmão! – mostra-se surpreso o outro rapaz, rindo e sorrindo muito.
– Obrigado – responde sorrindo o cego, apoiando com as duas mãos a bengala pelo topo, demostrando certa inquietação positiva ao pensar no neto, que julguei ser seu primeiro. – Antônio, o nome dele – completa, inclinando-se levemente para o lado para certificar-se de que o outro ouviria o nome com clareza.
– Antônio?! Meu nome é Antônio! – responde o flamenguista, quase num grito, atraindo para si a atenção de metade do vagão. Seus olhos estavam arregalados e fitando o cego, numa expressão de total surpresa. Admito que nesse momento eu tive que me segurar para não começar a rir e parecer um louco desvairado. Eu nem deveria estar ouvindo a interação daqueles dois pra início de conversa, se for parar pra pensar.
– Sério? Caramba, mais que coincidência! – responde o dono dos dreads, genuinamente surpreso.
– Sério, pô! – diz o outro, coçando a cabeça e ainda com a cara de bobo – Nossa, que doideira, parceiro.
– É verdade – responde Joaquim, rindo um pouco por conta do tom de voz de total perplexidade do homem.
– Mas e seu nome, meu amigo? Qual é? Como que tu chama? – pergunta Antônio.
–  Joaquim – responde o cego, com um aceno de cabeça.
– Joaquim? Tipo o filho da Angélica e do Luciano Huck? “Loucura, loucura, loucura!” – imita Antônio, com uma taxa não muito alta de sucesso.
– Isso, isso mesmo – responde Joaquim entre risos. – Só que sem o cartão de crédito ilimitado – brinca, exibindo aos poucos seu próprio senso de humor.
Antônio solta uma gargalhada que atrai novamente a atenção da maior parte das pessoas ali. Ele realmente não parece se importar nem um pouco com o que os outros passageiros pensam dele.
– Caraca... Nossa, até chorei aqui – diz Antônio, enxugando os olhos com a camisa, expondo sem preocupações a barriga de cerveja. Joaquim ri.
– Ai, ai... Tu é demais mesmo, viu. Mas me diz, tu trabalha, Joaquim? – pergunta Antônio, ainda tentando voltar a seu estado normal.
– Trabalho. Sou fotógrafo – responde Joaquim. E   após sentir a confusão de Antônio, que não respondeu nada em 5 segundos, Joaquim continua – Tô brincando!
– Porra, Joaquim! – reclama Antônio, tentando segurar o riso. – Eu achei que fosse sério!
– Só queria ver sua reação, parceiro – diz Joaquim, agora já rindo sem qualquer de tipo de timidez. – Viu só? Ver sua reação. Tô brincando de novo – ele completa.
– Como tu me faz uma coisa dessa, Joaquim! – responde meio exasperado Antônio. – Eu tenho sentimentos, irmão.
– Ok, ok, não fica assim – diz Joaquim, dando uns tapinhas nas costas de Antônio, que agora sorria como quem ria, a forma de sorriso mais genuína que já vi em seres humanos.
Nesse momento eu percebo que aquela interação entre os dois homens que literalmente acabaram de se conhecer estava sendo tão hipnótica para mim que eu já havia me esquecido de todo o meu estresse. Esqueci também do cansaço, esqueci que meu chefe é o ser humano mais detestável do mundo, esqueci do trabalho que estou levando pra casa na maleta. Que mágica estaria acontecendo? Seja lá o que fosse, aquilo estava tendo em mim efeito terapêutico.
Próxima estação: Afonso Pena. Desembarque pelo lado direito. O anúncio indicava que minha hora de descer se aproximava. O que normalmente me traria um grande alívio, hoje me deixou um pouco entristecido. Eu simplesmente não queria parar de observar aqueles dois, por mais intrusivo que isso possa parecer. Após alguns nesse pequeno embate, decido voltar a escutá-los enquanto ainda podia.
– Meu amigo Joaquim, se você pudesse ver a moça de vestido branco justinho que tá ali perto da porta.... Meu deus do céu – fala em tom de encanto Antônio, que a essa altura já está com o braço apoiado nos ombros de Joaquim, como se os dois fossem velhos amigos.
– Pô, não me fala uma coisa dessas, meu amigo. Assim eu fico triste – responde Joaquim, levando uma das mãos à cabeça, sempre de bom humor.
– Ah, se eu não fosse casado... – diz Antônio, olhando para a mulher.
– Ih, assim não vai pro céu – brinca Joaquim.
– Se é pelo não cobiçarás a mulher do próximo, eu já tô é condenado há muito tempo, meu amigo! – diz entre gargalhadas Antônio, e Joaquim segue, gargalhando tão intensamente quanto. A única diferença entre o metrô e a mesa de bar nesse momento é a ausência da mesa com uma garrafa de cerveja e do pagode ao fundo.
Joaquim levanta o dedo no ar ao ouvir o anúncio da próxima estação, que é a sua. Ele comenta com Antônio que vai precisar de uma ajudinha pra encontrar a porta do metrô e pede o auxílio de seu novo amigo. Este, prontamente se levanta e ajuda Joaquim até a porta da estação do metrô. Antônio se despede do amigo com um tapinha nas costas deste, que retorna o gesto. Quando as portas finalmente se abrem e Joaquim desce da composição, Antônio parece pensativo. Após cerca de cinco segundos, ele resolve sair também do metrô para acompanhar seu novo amigo e provavelmente evitar que uma amizade como aquela termine de forma tão prematura.
Minha estação é a próxima. Sinto um pequeno vazio que de nenhuma forma é ruim. Finalmente me levanto e dou uma última olhada rápida para os bancos vazio daqueles dois, como se eles ainda estivessem ali às risadas. Como é possível uma conexão como essas se consolidar tão rapidamente? A maioria das pessoas leva anos pra criar uma amizade e esses dois conseguiram isso em cinco minutos. Sinto como se meus próximos dias agora não fossem ser necessariamente ruins. Como se todas aquelas viagens de metrô agora tivessem algum tipo de propósito, que eu não sabia exatamente qual era. Talvez ir para o trabalho todos os dias não seja uma ideia tão dantesca, afinal de contas.