sábado, 24 de junho de 2017

A mulher dos livros

Hoje é o dia. Já faz bastante tempo que eu passo pelo homem dos livros do metrô para o trabalho, e o caminho inverso também. Hoje finalmente decidi mudar as coisas e sacar uma nota de 20 especificamente pra comprar um livro com aquele senhor que sempre parece alheio à agitação da estação do Flamengo. Sempre distraído, ele fica sob a maior árvore que ali existe, ao lado de sua banquinha de livros de todos os tipos, ele fica lá sentado por horas. Já vi até Dostoievski em sua coleção.
Hoje ele não me escapa. Vou encurralá-lo como um gato encurrala um ratinho que foi pego roubando um grande pedaço de queijo suíço na cozinha. Hoje, um daqueles livros será meu, mesmo que eu acabe por não lê-lo nunca, a questão era de – não digo de honra, mas de teimosia. Queria não ser tão teimoso mas sou.
É a minha estação. Desço do metrô lotado e me apresso até a banquinha, logo após passar pelo caixa eletrônico. Lá está o Sr. Anônimo dos livros, Sr. Vendo livros ou ainda Sr. Mate sua curiosidade. Como de costume, ele está em sua cadeira metálica dobrável, com o ouvido colado a um rádio de pilhas, olhando para o nada e, ao mesmo tempo, para si mesmo. Me aproximo e percebo que seu cartão de negócios é a indiferença. Ele não me dirige a palavra, mal me reconhece como ser humano, que dirá como cliente. Provavelmente deduz que eu seja mais uma das centenas de pessoas que por ali passam diariamente, olham dois, quatro, dez livros, pegam, folheiam, viram de cabeça pra baixo, examinam... Só faltam pegar uma lupa do bolso. E no fim, dizem para ele, como quem diz para si próprio “Na volta do trabalho eu passo aqui de novo, obrigado”, com o maior sorriso falso do mundo. Seria muito desgastante dirigir a palavra a tamanha população de pesquisadores de livros usados de rua, eu reconheço isso.
Eu me aproximo com cautela de um livro que me atrai a atenção. É Dickens. Traduzido, mas é Dickens. Pego o livro, tentando espiar se o homem me espia e tentando evitar que ele espie que eu o espio. Folheio um pouco, percebo que não é o que eu pensei.
– Olá, bom dia. Quanto custa esse aqui?
O homem ainda leva uns dois segundos antes de reunir a disposição e a força de vontade pra diminuir o volume do rádio e atender aquele cliente pentelho que provavelmente não vai comprar é porcaria nenhuma. Ele se levanta e vem vagarosamente até meu lado. Olha o livro um pouco e decide o preço na hora, que diz para si mesmo.
– Esse aí era especial. Uma vez ao mês. 25 reais.
Eu achei o preço razoável; nem caro nem barato. Enquanto penso com meus botões sobre o preço e sobre o que ele acabara de dizer, ele lentamente volta ao banco para se reatar com as raízes da grande árvore que certamente passavam pela cadeira e finalmente o envolviam. Ele precisava sempre voltar.
Eu decido fazer uma experiência. Já que meu aparente interesse no livro não é o bastante para fazer esse senhor me dirigir a palavra direito, talvez o dinheiro seja. Finjo pensar mais um pouco e de supetão movo a mão até o bolso de trás para pegar a carteira. Esse movimento não passa despercebido pelo homem, que finge não ter parado de ouvir plenamente seu rádio por uma fração de segundos. Tiro a nota de 20 que claramente não é suficiente. 
– Faz por 20?
– Não – foi tudo que ele disse. Eu titubeei por um segundo, mas insisti.
– Por que não? Esse livro é especial para o senhor? O senhor falou algo como de uma vez ao mês... O senhor o lia uma vez ao mês?
– Não eu. Eu não. Não gosto de ler – diz ele já perdendo a paciência.
 Mas a minha curiosidade coça mais do que a pressão de não me atrasar para o trabalho. Bem mais.
– Então quem? Seu filho? – eu questiono mais uma vez, dessa vez me sentindo na defensiva para o que viria. Ele olha pra mim, para o livro. E volta a olhar para si.
O “vai, pode levar por 20” dele que se seguiu até seria uma vitória para mim se eu agora não tivesse nas mãos um mistério maior do que o que eu tinha antes de sair do metrô.
Eu pago o dinheiro a ele, que o recebe de forma inteiramente mecânica, com um movimento de virar-se para trás da cadeira para pegar a pochete de dinheiro que, reparei, ainda estava vazia naquela manhã. Da mesma forma que pegou, ele a dependurou de volta nas costas da cadeira branca e enferrujada. E voltou-se para frente e para o rádio.
Guardo o livro na mochila e acendo o celular para constatar que ainda não estou terrivelmente atrasado para o trabalho.
– E esse aqui? – pergunto logo em seguida.
 Era uma versão bem pequena e de bolso de Alice no País das Maravilhas, esse em inglês. Ele impacientemente se voltou para mim e depois para o livro. Levantou-se, pegou-o da minha mão e virou de costas. Pude observar que ele foi direto ao fim do livro e havia um certo manuscrito lá. A letra era claramente feminina. Havia até mesmo um coração desenhado e uma cara de gatinho também.  Ele fechou o livro e eu fingi que não tinha olhado.
– Esse eu não vendo, perdão. Não sei por que tava aí.
– Por que não? É seu? – indaguei, sem a menor timidez.
– Não, não é meu, não – ele murmurou, como quem falava consigo mesmo e jamais com outro ser humano.
– Com licença, o jogo do Flamengo tá pra começar. Fique à vontade – e se sentou, dessa vez com o pequeno livro surrado de capa verde com letras douradas sobre a coxa, que cruzara sobre a outra perna ao se sentar.
Nesse ponto eu já estava praticamente dado por vencido. O homem não iria compartilhar a história por trás daquele livro por nada no mundo e talvez nem a do que eu acabara de comprar. Talvez fossem da mesma pessoa. Talvez algum conhecido dele. Eu não saberia e era hora de ir trabalhar. Parte do mistério estava solucionado, pelo menos. Com um aceno de cabeça eu me despeço dele e meu corpo se vira para a direção do trabalho.
– Do seu ela gostava muito – ele me interrompe sem qualquer tipo de peso na consciência. Eu não me importo nem um pouco.
– Ela lia todo mês, não sei como aguentava.
Eu me viro e me aproximo sem falar nada, percebendo que ele ainda não havia terminado.
– Ela tinha dois desse, olha ali – e apontou para uma versão maior e mais enfeitada do mesmo Grandes Esperanças, do Dickens. Não era um livro comum de se ver por aí. Eu continuo em silêncio.
– Ela adorava esse Dicke, Dickens aí. – ele irrompeu do silêncio.
– Sua filha? – emendei.
Percebi pelo silêncio dele que talvez tivesse ido longe demais. Mas ele encontrou vontade para falar. E falou.
– Não tive filha. Nem filho. A gente nunca gostou da ideia de ter filho, não.
– Sua mulher, então?
Nesse momento ele tirou os olhos de si mesmo e me olhou pela primeira vez do alto de sua baixa cadeira, com um semblante que misturava orgulho e dor.
– A única.
Após alguns segundos, eu voltei a mim e olhei ao redor. Vi que havia uma cadeira dobrada atrás da barraca. Me dirigi a ela, olhei para o homem, que imediatamente me concedeu permissão de usá-la, sem precisar usar as palavras.
Abri-a de frente para ele e sentei-me, a banca de livros livre para quem quisesse se aproximar. Ele prosseguiu.
– Ela tentou me fazer ler esse livro aí mas não era pra mim, não. Nunca gostei de ler, não. Não tenho paciência. Sempre gostei da TV e do rádio, entende?
Fiz que sim com a cabeça. 
– Ela lia muito?
Ele riu consigo mesmo, quase como se eu tivesse contado uma piada.
– Se ela lia muito? Olha essa banca. Já vendi metade do que ela tinha.
Era possível contar ao menos cento e cinquenta livros ali. Talvez duzentos.
– Ela não parava. Era viciada nesses livros. Lia pra descansar, pra chorar, pra rir, lia pra tudo, ela.
A hora do meu trabalho já havia passado e eu já havia pensado na desculpa no dia seguinte. Meu lugar, pelo menos naquele dia, era ali, em meio aos apressados, aos vendedores de Halls e Mentos de voz esganiçada, das bancas de sapatos falsificados e da dona que faz bolo e café com leite pra quem sai de casa esbaforido sem tempo de tomar café. E do vendedor de livros que finalmente tinha o rádio no chão, e não mais no ouvido.
– Vocês eram casados há muito tempo?
– Ihhh, bota tempo nisso. 30 anos tá bom pra você? – ele disse, usando expressões faciais que eu jurava que ele nem conhecia.
– Não sei até hoje o que ela viu em mim, estudada do jeito que era, elegante do jeito que era. Eu que nunca passei de um servente de pedreiro a minha vida inteira.
As mãos demasiadamente grandes, provavelmente achatadas pelas décadas de pás pesadas de cimento certamente denunciavam a carreira árdua. A pele bronzeada e os pés grosseiros e rachados eram como um cheque-mate do currículo profissional.
– Mas ela viu algo em mim mesmo e nunca ligou de fazer mais dinheiro que eu e nem de saber falar melhor que eu – ele disse, orgulhoso.
– Professora de faculdade, ela era. Dava aula de literatura inglesa, adorava o tal do Sheiksp, acho que  é isso, levei tempo pra decorar. Dava aula ali na PUC – disse apontando com todo o braço na direção da faculdade. E continuou.
– Última vez que eu fui na PUC visitar ela os seguranças até me olharam torto na entrada, quase me barraram mesmo, entende? E eu me senti tão mal que nem fui mais lá de novo não, entende? Mas ela era linda. Muito elegante mesmo, sempre no salto alto, falava bonito à beça.
O homem tinha o rosto cada vez mais iluminado. E eu estava cada vez mais inclinado em sua direção.
– Uma vez ela me comprou um ternão caro assim, sabe, daqueles que você vê  no shopping com um ator famosão, bonitão. Tinha um casamento de um amigo dela da faculdade, um professor de alemão, muito inteligente o seu Maurício, muito mesmo. A gente comeu e bebeu até se entupir, e ela me apresentava com todo o orgulho do mundo pros professores ricaços “Esse é meu marido, o Joaquim.” Era Joaquim pra lá, Joaquim pra cá.  Eu fiquei todo bobo, de verdade mesmo. A gente dançou tanto e comeu tanto, eu me fiz mesmo foi na parte do forró.
– O senhor dança forró?
– Eu que ensinei ela a dançar forró, meu filho! Tinha que ver, só dava a gente. E isso foi só há três anos atrás, não é coisa antiga, não. Tem coisa que a gente nunca esquece, sabe? Essa festança eu nunca vou esquecer, não.
– Então quer dizer que vocês eram dois dançarinos natos? – perguntei, já num tom brincalhão porque reconheci a abertura para tal.
– A gente adorava. Eu sempre fui sem vergonha desde caçotinho, era o diabo. Mas ela era muito reservada, sabe. Ô, mulher contida! Só dançava comigo por perto. A gente era o oposto nisso e em mais um monte de coisa. Eu brabo e ela calma. Eu impaciente e ela lá pra me acalmar. Mas dançava, de tanto eu insistir ela aprendeu a dançar como quem tinha o sangue nordestino nas veias!
Ele a essa altura não iria parar de falar nunca, parecia. E eu estava adorando cada segundo.
– Quando ela dançava... meu filho, quando ela dançava... Aí, era aí que eu via como ela nunca envelheceu, sabe? Do jeito que dançava aos 20 dançava aos 50. Até melhor aos 50; ela dançava mais solta, sabe? E a gente viajou pra tudo que é canto, viu? Ela sempre bancou nossos bate perna. Já conheci até a Europa todinha, sabia? Você já foi na Europa?
Antes que eu pudesse responder, ele continuou. Nunca foi uma pergunta. E ele seguiu, contando literalmente nos dedos os país visitados, com todo o orgulho sertanejo à flor da pele e o sotaque potiguar, que reconheci da minha própria mãe, mais aguçado do que nunca. Cada país recebia sua própria ênfase exagerada na fala do vendedor.
– Espanha, Alemanha, Itália, Suécia, França e até pros lado lá dos cafundó da Ásia. Tailândia, Indonésia tudo isso aí a gente foi. Esses livro aí da esquerda ela comprou tudinho na Turquia.
– Tá rindo? – ele me censurou de leve – A gente viajou tudo, meu filho! Lá na Turquia tinha uma bibliotecona lá e ela quase ficou sem dinheiro de passagem pra nós voltar de tanto livro que a bichinha comprou.
Ele riu consigo mesmo e suspirou por um segundo, contemplativo, e logo prosseguiu.
– Como a gente amou. Como a gente viveu. Ô, tempo que não volta mais. Muita tristeza, sabe? Mas ó, tô triste agora, mas é só agora, contando isso tudo, viu? Porque nós fomos muito felizes, meu filho, mas muito felizes mesmo.
– Qual era o nome dela? – eu perguntei quando tive a oportunidade.
Joaquim, eu eu sei como gravei o nome dele em meio a tanta conversa, se balançou um pouco na cadeira, ainda com a mente nas histórias dos dois. Ele se levantou, dessa vez com muito mais energia do que antes. Passou por mim, pediu licença, e pegou em sua mochila surrada um livro pequeno e vermelho, de Clarice, e deu na minha mão, para que eu visse o nome por mim mesmo. Enquanto ele se sentava novamente, descobri no livro uma dedicatória. Por respeito ou pressa, decidi não lê-la: li apenas o nome da mulher. A letra não tinha mais tanta firmeza, aparentemente. Era como de criança que ainda não havia atingido domínio da escrita. Pensei por um segundo e voltei a fechá-lo. Eu o mantive perto de mim pelo resto da conversa.
– Esse aí eu ela me deu no nosso aniversário de 30 anos. Ano passado. Esse eu até li porque ela pediu. Achei bem bonito, tinha uma menina nordestina como eu, mas não tive paciência pra ler outro, não. E nem quis. Muito triste.
Era uma versão rara de A Hora da Estrela, provavelmente edição limitada.
Ele prosseguiu.
– Foi alegre até o fim, a minha lindona, sabe? Lutou como até eu mesmo, surrado de sol e concreto a vida inteira, não teria conseguido lutar, vish, mas nem perto disso! Doença maldita! Ela nunca perdeu o sorrisão que fez o Joaquim de 25 anos cair apaixonado, eita! Gamadinho! Lá na época que tinha acabado de sair do ônibus do Nordeste e descido aqui nessa cidade. Quem diria que a filha da patroa seria tão linda? – ele cantou, voltando a olhar para si e não mais para mim.
Ele tirou do bolso um caderno preto, sem letras na capa, bastante fino e de páginas ainda brancas. Ele o pôs na minha mão, colocando a dele sobre a minha por um breve momento.
O caderno possuía manuscritos de três anos atrás, até mais ou menos um ano. Eram ideias. Títulos de poesias, nomes para romances, ideias de personagens, autores para estudar, possíveis rotina para escrever. Havia até mesmo pedaços de contos que claramente ainda precisavam e seriam finalizados por ela. Um desses contos se chamava Joaquim.
– Sempre quis escrever, a minha branquelinha. Nunca achou tempo, trabalhava tanto. Fica pra você – ele me disse.
Nessa altura o caderno já era meu sem que ele soubesse, pois o batismo pela lágrima era um batismo inviolável. Enquanto me afastava, lentamente, pude perceber de relance o homem voltando a cruzar as pernas, inclinando-se para o lado para pegar seu rádio do chão e pôr ao ouvido. Seus olhos viraram para dentro de si uma vez mais, mas o sorriso era novidade.