quarta-feira, 19 de julho de 2017

Fabíolas

São duas as pequenas Fabíolas. Para ser mais específico, são duas as pequenas Fabíolas Martins Araújo da Silva. Além da fantástica coincidência do nome, as duas são idênticas em todos os outros aspectos – e elas nem sequer desconfiam disso. Ambas moram com seus pais, também idênticos, em uma casa bem humilde de igual aparência em madureira, com dois quartos e de cômodos extremamente pequenos e apertados. Já tiveram ambas sete festas de aniversário, tendo sido a última na escola, com ornamentos da Mulher Maravilha, junto com os amigos e familiares. Medem um metro e quarenta e oito, têm a pele clara e os cabelos morenos e não desgrudam os olhos azuis da TV ao chegar da escola. O jeito reservado de menina bem comportada, assim como o ódio mortal por cenoura e qualquer tipo de alimento laranja também eram mútuos entre as meninas.
Aos dez anos, não era incomum vê-las largando mão de assistir aos desenhos que tanto idolatravam para passar a tarde inteira depois da escola ao pé da janela atracadas com livros sobre a vida animal. Eram apaixonadas por biologia. Suas mães, também idênticas e de mesmo nome, adoravam a cena e achavam muito tocante – visto que elas jamais tiveram a chance de estudar por terem tido que trabalhar cedo. Sempre levavam um Nescau para as meninas sem ter coragem, no entanto, de interrompê-las por um segundo sequer.
Com doze, as Fabíolas, já mais crescidas, fizeram muitas amigas na escola e o sonho da biologia cintilava como safiras nos dois pares de olhos de cor azul. Quanto mais cresciam, mais descobriam sobre a variedade da vida e seus planos agora iam em direção ao mar. No ano anterior descobriram sobre os peixes que vivem na escuridão total e usam da bioluminescência para atrair presas, e ficaram fascinadas com essa informação.
Com isso, as Fabíolas já haviam decidido seu futuro: seriam grandes biólogas, conhecidas no mundo todo. As meninas não abraçavam um urso de pelúcia ao dormir, e sim a imagem do futuro, onde elas estariam onde gostariam de agora estar. Era assim desde que viram o Sergio Rangel no programa da Eliana num domingo qualquer, quando menores. Ou era aquilo ou não seria mais nada.
Porém, como nem toda história fantástica tem um final fantástico, as Fabíolas idênticas cresceram e viraram mulheres, mas uma delas, fatalmente, está hoje morta. Talvez a maior diferença – se não a única – entre as Fabíolas em todos esses anos tenha sido o fato de uma respirar e a outra já não mais. Obra do Destino.
O Destino, que é um dos mais poderosos deuses de que se tem notícia, é extremamente atarefado. Trabalha sem parar, decidindo o rumo das pessoas e de todos os seres em todos os momento. É dispersivo por natureza, então, por vezes, usa de pequenas ironias e brincadeiras como distração, antes de voltar ao trabalho rotineiro. Foi essa a forma que achou para se manter sempre entretido. Já não era sem tempo que ele resolvesse brincar um pouco, e assim o fez.
Em seu tabuleiro de xadrez das variáveis do tempo e espaço, escolheu dois Chevettes laranjas para aquele dia de brincadeiras. Dos dois carros idênticos, escolheu um e afrouxou um parafuso e deixou o outro carro inalterado. Em madureira, era o pai das Fabíolas, seu Antônio, parado perto do ponto de ônibus com as escassas compras do mês. Chamou a atenção dele o Chevette laranja que ia vindo a toda velocidade em sua direção e raspou a poucos centímetros de sua barriga, quase atingindo-o. Xingou e reclamou com todos à sua volta sobre o maníaco irresponsável que poderia matar um qualquer dia desses. Seu Antônio estava morto de alívio em segredo.
No entanto, aquele Chevette que quase o matou, só não o fez pois estava bem regulado. E não é desse pai que estamos falando.
De mesma aparência, nome e personalidade do primeiro, o Seu Antônio, pai da outra Fabíola, teve de diferente somente a sorte, tendo sido atingido em cheio  pelo Chevette e morrido poucos segundos depois, comprimido contra a parede daquele prédio demasiadamente branco. A comoção foi grande e a multidão logo se aglomerou em torno do corpo, da lataria amassada e do vidro estilhaçado.
Terminada a travessura, o tédio havia passado e era hora do Destino voltar ao trabalho.
Ao saber da notícia, em todo o seu desespero de mãe, dona de casa e agora sem seu marido, a mãe da adolescente rapidamente desenvolveu um quadro de depressão. Fabíola ainda não tinha o aparato emocional necessário para interpretar em sua plenitude a desgraça em que seu núcleo familiar acabara de mergulhar. O futuro seria sombrio para essa Fabíola em específico.
A outra Fabíola seguia normalmente. Seu pai estava bem de saúde, porém mal de dinheiro, como de costume. Mas estava vivo, isso era o que importava. Sua família, apesar de pobre, ainda conseguia se sustentar e bancar os lápis de corujinha e estojo de ursinhos da filha, assim como a própria alimentação da garota. Se alimentava, porém, mais de seu sonho de ser bióloga do que de proteínas. Ainda mais considerando que os tempos de vestibular se aproximavam e por conta disso não havia uma viva alma que se lembrasse da fisionomia de Fabíola que, trancafiada por vontade própria em seu quarto, não fazia nada além de estudar para os exames. Os pais, como de costume, admiravam o ritual com total abnegação.
Para a outra Fabíola, órfã de pai e com mãe doente, a biologia havia deixado de vez a cabeça, visto que a confusão lacerante e as primeiras centelhas de desespero agora ocupavam todo aquele espaço. O sonho já nem podia ser mais visto. Vista mesmo era Fabíola, todos os dias, vendendo balas no sinal perto do Mercadão de Madureira, que as comprou com suas pequenas economias para vender na rua. A ideia do negócio havia sido de sua própria mãe que, se outrora não interrompia os estudos da filha nem por decreto, agora, sem o sustento do marido, encorajava o abandono do sonho para abraçar a própria subsistência e também a da adolescente. Fabíola não aparecia na escola já havia sete meses.
Alguns anos depois, era hora da outra Fabíola, a quem o destino deixou em paz, entrar na faculdade. Seus olhos cintilavam ao conhecer os corredores, salas de aula e até mesmo laboratórios da universidade. Só de pensar em tudo que aprenderia ali sobre tudo que ainda não sabia a extasiava. Seu coração explodia em chamas da mais genuína felicidade e ela precisava a qualquer custo não deixá-lo escapar pela boca.
Estudou muito, mas muito mesmo. Tanto para entrar na universidade, quanto para continuar nela. Seus pais, orgulhosos, não falavam de outra coisa se não da Fabizinha ter entrado pra Federal de primeira. Não faltava assunto quanto o tópico era a filha. “Não sei de onde veio tanta inteligência e garra”, era uma de frases preferidas de Seu Antônio. A mãe geralmente ria ao ouvir a frase se repetindo, mais uma vez, nas conversas, enquanto Fabíola invariavelmente se envergonhava em toda ocasião do tipo. Ser o centro das atenções nunca foi exatamente seu forte. Fabíola, por esses motivos, não planejava nem tão cedo apresentar Felipe, seu namorado da faculdade, aos pais. Ela decidiu que era prudente esperar um pouco para a grande revelação.
Já a outra Fabíola não namorava, apenas corria. Ultimamente corria muito para pegar dos retrovisores as balas que deixava à mostra aos motoristas sempre que o sinal fechava. Corria tanto que agora era possível até mesmo enxergar uma diferença entre ela e a outra Fabíola: ela estava uns dez ou doze quilos mais magra que sua doppelgänger universitária. Numa dessas idas e vindas, descuidou de sua caixa de Halls e um vendedor de um sinal rival roubou-a enquanto Fabíola estava distraída atendendo um motorista que sempre comprava com ela. Fabíola correu mais que de costume atrás do larápio. Correu em vão. Ela era boa de perna mas não tanto assim e ele já estava longe. No meio da rua, desolada, ela atira ao chão o pouco dinheiro que conseguiu da última venda e o chuta pra longe; seu chinelo também se desprende de seu pé e sai rodopiando e desaparece. Os carros ao seu redor aceleram aos poucos conforme dita o sinal verde, deixando para trás Fabíola, lentamente.
Sem ter mais o que vender naquele dia, ela volta pra casa. Móveis, pouco restam no casebre. Fabíola precisou vender a maior parte deles para bancar a internação da mãe, que havia desenvolvido uma forte pneumonia de tanto ficar deitada em casa. Fabíola conseguiu o dinheiro para interná-la com um esforço indizível, mas sua mãe veio a falecer apenas alguns dias depois daquilo.
Ainda revoltada com o furto, ela revira o quarto, também vazio de móveis, em busca da última caixa de Halls que havia comprado, pois o estômago já estava roncando e logo estaria anoitecendo. Ela precisava voltar para o sinal o mais rápido possível e vender mais. Ledo engano de Fabíola: a última caixa ela havia levado hoje para a frente do Mercadão.
Em meio a um choro descontrolado, Fabíola esmurra as paredes, derruba tudo que vê pela frente. Como que por um estalo, decide pegar uma grande faca na cozinha e sai porta afora com ódio nos olhos e uma fúria no coração como há anos não sentia. Ela sabia onde o ladrão costumava ficar e não ia deixar aqulio barato.
O Destino dormia. Acordou sem esforço, sentou-se na cama e olhou rapidamente para o relógio de pulso. Porém, não era dele o momento de se manifestar, não dessa vez. Virou-se para o lado e acordou a amante, que dormia tranquilamente até então. O momento era propício, e ele aconselhou a Morte a se ocupar de fazer seu trabalho já há muito protelado e dar cabo a Fabíola, como havia dado a Seu Antônio e a mãe da mulher, alguns anos antes.
Em outro plano, podemos ver que, após centenas de horas de estudos, noites mal dormidas e exames, a outra Fabíola finalmente se forma bióloga. O sucesso é retumbante, ela sabe, e seu planos funcionavam como uma flecha. Mais que isso, tornou-se doutora em estudos da vida marinha em profundidades abissais, e mora hoje na Austrália, prato cheio para estudos do tipo. Vive ainda um casamento pleno com Felipe, o mesmo dos tempos de faculdade, que apresentou aos pais poucos meses depois de formada.
A dedo e ao longo de bastante tempo, Fabíola e Felipe escolheram juntos a Austrália como futura moradia. Por alguns anos, eles trabalharam duro para conseguir a mudança de vida – deixar para trás o Brasil e mergulhar em mares australianos em busca da vocação mútua. Compraram uma casa e se estabeleceram na capital, onde já tinham emprego arranjado desde antes de deixar o país sul-americano. Começariam a vida nova como pesquisadores em uma importante universidade local. Não dava pra ficar melhor que isso. Eles viviam exatamente a vida que planejaram e o Destino havia sido bondoso com eles. O plano de Fabíola era trabalhar e juntar dinheiro por quatro ou cinco anos, para então ter um filho, para o qual já tinha até nome decidido: Antônio. Em relação à sua vocação de esposa e bióloga, no entanto, o sonho já estava concretizado, e o momento era de trabalhar duro para tecer sonhos futuros.
Em um outro lugar, distante dali, havia o sangue. A Morte havia finalizado mais um trabalho e se preparava para ir embora, limpando mecanicamente o sangue quente da foice com um pano. Fabíola estava, por fim, morta. No meio da rua, a mulher em posição fetal reunia uma multidão de curiosos, num velório improvisado dos que não conseguiram vencer a própria curiosidade. O burburinho dos comentários só não é mais desagradável que a pena dissimulada dos que na verdade nada sentem. O clima era macabro durante o espetáculo da perda da vida, do sangue que corria ordenadamente ao bueiro mais próximo daquela rua imunda.
Na cena fúnebre havia um homem inconsolável, seu choro poderia ser ouvido a muitos quarteirões de distância. Enquanto ele esmurra a lataria do ônibus laranja, manchado com o sangue de Fabíola, seu mundo se esvai como vapor, vira de cabeça para baixo, cada segundo um pouco mais. Talvez tivesse sido melhor nunca ter se mudado para a Austrália com sua amada. Por que raios havia deixado ela convencê-lo a se mudar?! Por que ele não escutou a voz da razão, a voz do Medo, que o aconselhara tantas vezes a desistir dos planos, que eram ambiciosos demais? Certo seria ter construído uma vida simples no Brasil com a esposa. Mas Fabíola nunca lhe deu ouvidos, para azar dela e também do rapaz, visto o resultado de todas as decisões tomadas até ali. Felipe estava só, num mundo desconhecido. Fabíola já não respirava.
Sobre a outra Fabíola? Essa ainda se encontrava do outro lado do mundo, mais esperta do que nunca. Havia conseguido matar o rival com uma punhalada certeira na nuca. Os conhecimentos de biologia tinham lhe servido pra algo, afinal de contas. A autoria de seu crime jamais veio a público e seu paradeiro para sempre permaneceu desconhecido. Sabia-se que estava viva, no entanto, pois todas as pessoas que por ela foram furtadas sabiam que aquilo não havia sido obra do vento. Fabíola estava viva, e talvez viva até demais.
A Morte, indiferente como sempre, ia se preparando para dormir. Seu semblante é de cansaço e falta de ânimo. Antes de adormecer, porém, percebe no rosto do Destino um sorriso que, ela sabia, era indício de mais uma travessura bem-sucedida.