quarta-feira, 6 de março de 2013

Mortevida


Durante toda a minha vida me disseram que pessoas não morrem, pois suas almas permanecem vivas e rumam a um lugar maravilhoso conhecido popularmente como “céu”. É tudo muito fantástico; basta dar uma breve olhada na premissa: permanecer vivo após morrer, ao lado do Criador de tudo, em ruas de ouro maciço com pedras preciosas de todos os tipos encravadas. Riqueza, felicidade, amor, paz. Obviamente há os que não têm tanta sorte e vão para o sofrimento eterno (bastante tempo) no “inferno” e são tostado pela figura chamada “Lúcifer”. 

Mesmo tirando as partes indesejáveis, feiosas que os não santos receberiam, a ideia ainda não soa muito interessante. Nós, como pertencentes da espécie Homo sapiens, sabemos de fato que estamos fadados a morrer, pois nosso cérebro grande nos dá essa perspectiva de futuro. Se sabemos que morreremos, qual então o sentido do céu? Pra que aproveitar essa vida se, quando ela terminar, teremos tudo do bom e do melhor, e para sempre? Algo está errado. Muito errado.
   
Religiões e credos à parte, nós todos temos a certeza da morte e boa parte das pessoas a temem fervorosamente. A temem porque a morte significa o fim das coisas conhecidas. Significa o fim dos sorrisos, das risadas de criança, da sensação da água do mar batendo em suas pernas e do cheiro do sal proveniente desse mesmo mar, do amor, da diversão, das dúvidas, dos amigos; o fim de tudo. E ainda teremos uma questão mais séria, caso o céu realmente não exista: nós não nos lembraremos de nada que vivemos, aprendemos ou criamos. Nada chegou a acontecer, para todos os efeitos.
  
Desconsideremos o paraíso, o plano celestial e todos os outros sinônimos desse lugar que ninguém sabe se é real. Vivamos a realidade: nós temos prazo de validade. Prazo esse que não é definido. Alguns sortudos duram 120 anos, outro mal têm a chance de ver o rosto do médico que lhes apresentaria o mundo brevemente, de cabeça para baixo. Nosso prazo de validade é imprevisível. Acabado esse prazo, muitos terão escolhido um enterro. Caixão, corpo, choros, buraco, terra, escuridão, silêncio. Tudo terminaria ali para aquele ser humano, mas não é exatamente o que acontece. O que define “estar vivo”, no fim das contas? Ter vontade própria, pensar,  ter noção da própria existência e da existência de outras coisas? Provavelmente. Quando deixamos de funcionar, isso tudo fica para trás, é verdade, mas nossa carcaça permanece. Nossas células morrem, mas nossas moléculas permanecem em laço. Nosso coração para, mas não deixa de existir.

“Existir” no sentido de que o que conhecemos como “coração” ainda está lá, inteiro. Podemos dizer isso de quase tudo em nosso corpo. Parafraseando Machado de Assis, os vermes decerto roerão nossa carne até que só nos reste os ossos, que também se degradarão com o tempo. E partindo para o campo das ciências (no qual não sou nenhum expert, que fique claro), é lei fundamental da Química que a matéria não pode ser criada e nem destruída, apenas modificada. Ora, então para onde foi minha carne? Bom, não é difícil traçar um mapa progressivo do percurso que essas moléculas percorrerão.

Primeiro é o que já conhecemos. Elas passarão pelo sistema digestório do verme. Certa quantidade será destinada às funções vitais do bicho, certa quantidade será excretada. Da terra, essas moléculas provavelmente servirão de alimento para algumas folhas de capim, do próprio cemitério mesmo. Pedaços mínimos seus agora estão incorporados a um vegeral, um outro ser vivo. Após algum tempo, através da fotossíntese, você será exalado pela planta em direção à atmosfera. Essa parte de você se resume agora a partículas de oxigênio.

Todos sabemos que pessoas gostam de respirar oxigênio e daí entendemos que você provavelmente entrará no organismo de algum familiar de outro morto que está buscando mais ar do que o normal por conta dos suspiros de lamúria. Você agora está dentro do corpo de um outro ser humano e vai auxiliar este a permanecer vivo. Ao sair dessa pessoa, agora na forma de gás carbônico, outras plantas aguardam ansiosamente para absorvê-lo e repetir o ciclo. Milhões de bilhões de “vocês” voando por aí, invadindo o interior de inúmeras pessoas e auxiliando-as na árdua tarefa de viver, coisa da qual você não pode mais gozar como antes.

Sim, “como antes”. Para todos os efeitos, você ainda existe, apesar de não ter mais um nome, um endereço, uma identidade, uma imagem definida no espelho, vontade própria, amigos e nem mesmo consciência da própria existência. Você, assim como um feto de alguns meses, vive sem saber que vive. Vive sem saber se viverá ou se já viveu. Vive sem saber que o mundo, o sistema solar, o unverso existem. Um andarilho eterno das correntes aéreas, dos sistemas respiratórios e das experiências que agora não podem ser guardadas. Mas você vive. Como um professor de Fìsica um dia me disse, “você tem uma chance minúscula de estar respirando o último suspiro de Napoleão neste exato momento”. 

3 comentários:

  1. Ótimo texto, ainda que eu discorde desse tom um tanto quanto cientificista. Uma provocação: percebeu que essa transformação da energia segundo as leis da química, levam a um tipo de ciclo? por que não pensar que tal "energia", na verdade, não seria algo muito mais além do que energia, algo muito mais individual e intrínseco a existência de um ser, que tal uma alma? :p
    Você se lembra da República?

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  2. Eu gosto da sua visão, Daniel. Podemos considerar sim que essa energia cíclica é um tipo de alma, ainda que seja "comunitária" em sua natureza, já que muitos ciclos se misturam (portanto não tão intrínseca e individual). Mas não sei de que República você fala, haha.

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  3. República de Platão. Ele fala justamente dessa visão que tenho. Anyway, não creio que ela seja comunitária, uma vez que ela é o que é mais intrínseco do indivíduo. O meio pelo qual essa "energia", prefiro alma, se manifesta pode variar, corpos, matéria, humanos, animais, vegetais e etc. Cada um desses meios corresponde a um ciclo, e em cada um deles nossa alma vai agregando coisas que a tornam mais completa - como se em cada ciclo de vida nós agregássemos algo a nossa individualidade, ainda que não lembremos dos ciclos passados.

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