domingo, 4 de agosto de 2013

Encarcerado




Vivemos em cárcere.  Nosso espírito (que sim, existe) tem vontades, tem desejos profundos e não conhece limites e nem dificuldades. Angústia, medo, incertezas não fazem parte dele. Nosso espírito é determinado, mas não entende que suas opções são pré-determinadas e pré-limitadas. Ele também vive dentro de um corpo, e esse corpo é defeituoso em sua natureza e é o cárcere do nosso espírito. Não só cárcere, como também torturador, vetando desejos, ditando regras e esmagando a liberdade desse espírito que, sem opções, acaba contentando-se com os confins de sua gaiola.

Nosso espírito nunca se abnega de suas vontades, mas sujeita-se às vontades desse corpo demasiada e desnecessariamente complexo. Para que respirar, para que alimentar-se, dormir? Ou mesmo andar. "Voar seria tão mais prático! Quanta burocracia!" Esse espírito gostaria mesmo é de atingir picos de montanhas num piscar de olhos, de ter o que deseja agora, e não aos 30 ou 40 anos de idade, quando o dono do corpo irá, talvez, conseguir reunir dinheiro suficiente para arcar com tais desejos. Esse fluido de temperamento forte e cheio de vontades não entende que existem limites físicos e sociais ao nosso redor que insistem em impedi-lo de ter suas vontades saciadas. Insiste em não entender que é preciso trabalhar e estudar a fim de alcançar objetivos a médio e longo prazo.

“Perda de tempo! Me tirem daqui, por favor...”, grita esse espírito enquanto dá murros, que vão ficando cada vez mais fracos, contra as grades de ferro dessa cadeia dissimulada. Dessa cadeia que, regrando, selecionando e vetando a maior partes desses desejos “impossíveis”, traz descontentamento ao nosso pobre, pequeno e solitário espírito, que acaba por se contentar em sentar-se num canto qualquer de sua cela e ler uma revista de 1997 sobre qualquer coisa com um evidente semblante de frustração.

Mas a esse espírito são dadas algumas regalias de tempos em tempos devido a seu bom comportamento. O carcereiro irá em qualquer tempo chegar a sua cela e lhe dar roupas, outros bens materiais, talvez alguma viagem. Mas nada disso basta para ele, que quer não bens, mas tudo. A esse espírito que quer viajar no tempo, que quer voar e ler mentes. A esse espírito que gostaria de ter tudo para si a seu bel-prazer, e não contar com visitas irregulares de um carcereiro que tenta passar a imagem de justo e bondoso mas que não passa de uma velhinha dando migalhas a pombos que gostariam mesmo é de ter todo o saco de pães que ela segura.

E assim segue nosso espírito até seus momentos finais, que coincidem com a demolição da cadeia. Isso acontecerá depois de uns 70 ou 80 anos (talvez um pouco mais, com um pouco de... “sorte”). Não há possibilidade de rebelião, visto que ele é o único prisioneiro ali e não há a possibilidade de cavar um túnel, pois a cadeia é definitiva e inescapável. Uma vez destruída, seu prisioneiro sucumbe junto a ela, sem ter realizado ao menos uma fração ínfima de tudo que gostaria de fazer mas nunca pôde, por ter tido a infelicidade de nascer encarcerado.   

Supermercado



  

Manhã tranquila de quarta. Acordar tarde, matar um tempo na internet, sair pra tirar um dinheiro no banco. E comprar milho de pipica pra micro-ondas; não poderia me esquecer disso. A pipoca de micro-ondas. E o mundo é engraçado. Por todo o caminho, pessoas conversam, vivem e não fazem segredo disso. Pessoas interagem e o fazem em voz alta, quase como se não pudessem conter a alegria de ter uma vida normal, onde tarefas do cotidiano não são apenas rotina, mas uma satisfação inconsciente. 

Chego ao supermercado e observo mais disso, com inigualável, porém discreta, contemplação. Um empacotador pratica golpes de tae kwon-do, que possivelmente aprendeu em seu dojô na semana anterior, em seu colega de trabalho, que o olha com cara de “esse doido é meu amigo”.  Enquanto isso, uma velhinha com o semblante mais pacífico atravessa o portão do local com sua mochila de rodinhas a 2km/h, enquanto outra mulher, muito mais energética e decidida, força a entrada de uma bolsa de pano em seu carrinho de compras com a ajuda de seu parceiro. 

Entro no supermercado e fico abismado com a magnitude do local (note que não é comum para mim ir às compras da casa). Um shopping center, quase. Pessoas se atravessam como flechas intocáveis, trabalhadores operam como máquinas de uma montadora multinacional em meio ao ar frio, porém agradável, do ar condicionado. E as conversas permeam todo esse caos organizado, tão organizado quanto as prateleiras do supermercado. Ora falam da partida de futebol da noite anterior, ora falam sobre os ovos de páscoa que seus parentes adorarão receber. Ora falam sobre qual marca de tempero preparado é melhor, ora sobre como a pessoa do outro lado do celular não atende. Uns mexem em seus tablets como alheios ao local, outros pesam as batatas como habitantes dele. 

"Mas onde está o maldito milho de pipoca de micro-ondas?", eu me pergunto. Pergunto a um, a dois empacotadores. Um me indica a direção nordeste, e eu sigo. Sem sucesso, logo faço a mesma pergunta a uma segunda empacotadora (que gentilmente pergunta a um terceiro) sobre o prezado milho de pipoca de alguns trocados. Ela então, tendo obtido a resposta, com um sorriso no rosto, me indica a mesma direção. “Não segui esse caminho por tempo suficiente”, penso comigo mesmo, e então agradeço. Chego lá e me deparo com uma parede de tipos de milho de pipoca (nem sabia que existiam tantos!) e com a sensação de missão cumprida, sigo para o caixa, cuja atendente está mal-humorada e desanimada. Será que brigou com o namorado e não conseguiu dormir? Não sei; o que sei é que como ela, muitos outros seguem suas individualidades na rotina de suas vidas, que por vezes pode ser muito recompensadora pelos menores e mais desconhecidos motivos.