quarta-feira, 2 de julho de 2014

Meliante

Bangu, Rio de Janeiro.
Março de 2008.

Parecia que eu tava preveno que aquele dia ia ser zuado. Incrível, viado. Já acordei pisano no gato e descobri que a margarina tinha acabado; comi creme craquer purim. Tô te falano, Creito... É Creito o seu nome, né? Então, Creito. Já amanheci zicado das ideia naquele dia... Acho que já acordei daquele jeito já, pisano no gato e tal, por causa que eu ia fazê meu primeiro roubo naquele dia, mano. Eu não tava quereno mas os mano tava botano muita pressão, tá ligado? O Gaivota já tinha separado até o ferro pra mim já. E o Gaivota, ele era o bandido do tipo que nego num ousa contrariá, tá ligado? E eu que num ia desafiá o maluco. Eu tenho amor à vida, pô!
Aí tá. Depois de eu cumê mal pra caralho, ca barriga mó vazia ainda, bejei a minha mãe e eu fui até onde o Gaivota tava cos muleque me esperando pra fazê o esquema lá. Era cedim ainda, pô, era nem onze hora ainda. Só sei que já cheguei me tremeno todo, tá ligado? Conseguia nem escondê o nervosismo. E foi só eu chegá pra ele já começa cas impricância:
– Iiiiiiih, olhaí quem tá chegano! Olhaí! Vitim pro primeiro 157 dele! Aí ele virô pra mim, né:
– E aí, menó, tá preparado?! Aqui teu ferro, cuidado pra não atirá no próprio pé, hein!”
E aí ele começô a rir cos outros cara da boca, fiquei com mó vergonha. Fiquei com mais vergonha ainda de quase derrubá aquele trezoitão no chão porque eu nem tava ligado que era pesado daquele jeit– Porra, para de rir, viado! Tu sabe que é pesado pra caralho, Creito! Paraí, deixa eu continuá, pô! Então... Depois disso aí tudo o Gaivota me expricô que nóis ia descê pra roubá o carro na rua ali pertim e que eu que ia tê que anunciá o assalto. Ele disse que eu ia rendê o maluco no sinal e depois geral ia entrá no carro pra voltá pra comunidade, Gaivota dirigino.
E a gente foi, né, e a essa altura eu já tava branco de medo. EU branco! Té parece! Então, mas eu tava me cagano mermo, viado. Mas aí nem deu tempo de eu me prepará que o amigo do Gaivota já tava sinalizano que era preu pegá o Corsa preto. E eu como? Já fui correno já, mas acho que o cara do carro percebeu que eu tava me borrano e já saiu do carro bolado me bateno fortão, mané. Chamei os maluco pra me ajudá mas quando olhei eles já tava tudo longe! Os desgraçado correro e me deixaro lá apanhano do bombadim! Só sei que quando dei por mim o playboy já tinha me dado uns três soco na barriga e me amarrado com uns fio de sei lá o quê lá na beira da rua e tava ligano pros hôme já. Pensa no desespero, viado! Tentei de tudo pra fugí mar num ia tê jeito mermo.
Num deu 30 minuto e a viatura da PM chegô. Os cana já bolado olhano pra minha cara como se num tivesse almoçado e eu fosse um pernilzão tipo aqueles do Tom e Jerry, tá ligado? Mas aí eles foro falá com o pleysson primeiro, e ele contô tudim o que tinha acontecido. Os puliça já veio com o cassetete na mão já, e eu como de desespero já? Eu num sabia se chorava, se tentava me soltá, se rezava, se gritava pela minha mãe... Minha cabeça tava a mil, viado. Só sei que eles já chegaro meteno um porradão sinistro na minha canela que fez até barulho e eu nem tava fazeno nada! Tava quieto na minha! Aí começaro a gritá na minha cara, que eu era vagabundo, que eu era trombadinha, que eu era um bostinha. Pô, eu sei que eu sou, mas precisava falá na cara assim?
 Enquanto o primeiro PM ia cortano os fio o outro me aplicava um mata-leão fudido pro otro me tirar o fio de prástico e botá o de metal, tá ligado? Como se eu fosse alguma ameaça pra eles, magrelim desse jeito! E o pió é que eu nem fazia ideia de onde o trezoitão tava. Acho que o playsson levou. E aí me levaro pro camburão. Mano, impossível tirá da memória aquela lâmpada do carro da PM girando ca luz vermelha. Daquele vez EU que era o bandido, tá ligado? Não era um carinha na televisão mais, era eu! Eu! Minhas perna voltaro a tremê, mas dessa vez era de desespero mermo. Daí eu lembro que eles enfiaro minha cabeça dentro do carro e fecharo a porta do porta-mala com um porradão. Eles entraro no carro e o puliça do carona virou pra olhar pra minha cara:
– Tu é um merdinha, sabia? Roubando carro em plena luz do dia? Tem que ser tapado DEMAIS. Hahaha. Agora taí na merda, no camburão indo pra delegacia. Tsc, tsc.
Aí ele virou pro motorista:
– Já viu algum trombadinha mais burro do que esse, Vieira?
– Se vi num lembro!
E olhou pra mim de volta:
– Quantos anos voc--- ihhhh, olha lá, Vieira! Tá chorando! O marginalzinho tá chorando! Na hora de fazer MERDA tu num pensa nisso, né? Na hora de meter arma na cara dos outros você sabe, né, seu VERME! Maltrapilho do caralho, vamo ver se agora aprende. Tenho pena é da sua mãe...
Aí, se virando pro motorista de volta:
– Vagabundo do caralho... Ih, peraí! Vieira! Peraí, para o carro rapidinho! O Percival disse que a coxinha dessa lanchonete é a melhor que tem! Vou comprar umas pra comer na delegacia. Rapidinho, já volto!
Nessa altura eu já tava com a cabeça zunino. Tava me sentindo meio que na anestesia, sei lá. Ainda num tinha caído a ficha que eu tava ino preso, tá ligado? Tu num imagina a sensação ruim, viado. Sensação de num tê como corrê, de tá ali que nem um bicho, veno minha liberdade seno tirada de mim. Como eu ia jogá bola cos moleque agora? Quando que eu ia zerá o God of War II, cara? E a minha mãe? Nem queria pensar no sofrimento dela quando ela subesse. O puliça tava certo... Trabalha de doméstica o dia interim pra me sustentá e eu faço uma merda dessa? Ela num merecia isso.
Enquanto minha cabeça girava com esses pensamento, o cana voltou pro carro com um saco cheim de coxinha, e o cheiro tava maravilhoso. E eu, com o estômago roncano, só conseguia pensá em voltá pra casa e comê uns creme craque puro e ficá no Orkut. Por que eu tive que ir na onda do Gaivota, Creito? Por quê?! Eu sou um idiota mermo, esses puliça tava certo mermo. Minha vida num era das melhores mas dava pra levá na honestidade, tá ligado? Pensano nessas coisas começô a dá vontade de chorá de novo, então eu fechei os olhos bem forte e tentei imaginá quando esse pesadelo ia acabá pra conseguir segurá o choro. Pra num virá chacota dos cana de novo, tá ligado?
 Só sei que logo chegamo na delegacia. Já gritaro logo pra eu sair do carro e foro me empurrano até lá drento. Achei que todo mundo fosse ficá olhano pra minha cara mas eu acho que eu era só mais um neguinho entre tantos outros. Já num era novidade pra eles. Lá drento os telefone num parava de tocá, era gente andano pra todo lado, igualzim nos filme, tá ligado? Pena que eu que era o meliante ali, e aquilo tava aconteceno de verdade. Minha liberdade tava perdida, eu me senti que nem que um cachorro na coleira. Sensação de “criança chora e a mãe num escuta”, tá ligado? Se bem que preferia que minha mãe num escutasse mermo... Mas é isso aí, Creito. Foi assim que eu vim pará aqui. Agora é sua veiz de me contá a sua história.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Este texto é pretensioso

 
     
Uma das coisas que mais fazem minha cabeça girar é ler que determinada obra de ficção ou produção artística é “pretensiosa.” Filmes, álbuns de música, pinturas, tirinhas de jornal, livros, posts de blog. Nada escapa dos apontadores dessa suposta pretensão artística, que aparentemente (se existente) é um mal a ser combatido e expurgado da boa vida de bons costumes e bons clichês.  Da vida de seguranças infinitas e confortáveis que não deve ser abalada em hipótese alguma.

Mas vamos tentar analisar melhor a questão. Qual seria o real sentido (o lógico, por assim dizer) de definir algo criado a partir de reflexões, inspirações, trabalho duro (ou até mesmo ao correr da pena, não importa) como pretensioso?  O que é “pretensioso”? Seu Aurélio diz que significa “vaidoso, soberbo, presunçoso,” adjetivos comumente direcionados a pessoas, seres capazes de sentirem que "são mais do que realmente são", indicando que a pretensão não seria da obra, mas sim do autor. 

Dá pra perceber esse embate com escritores/diretores de filmes que possuem uma proposta diferenciada, que experimentam novas formas de emitir sentidos e tenta deixar de lado um pouco O Grande Livro dos Clichês, tão amado por outros. Esses serão os que alguns chamarão de pretensiosos. O que ele pretendeu expressar com sua arte será imediatamente percebido por alguns como “passo maior que a perna”, uma tentativa vã de escapar das prescrições quase vernaculares daquele gênero, que aparentemente é uma verdade não escrita e que aquele artista teve a petulância de ignorar.

Lars Von Trier seria então o rei dos pretensiosos. Seu filme Dogville (2003) é um cujos cenários são feitos como os de peças teatrais: não existem paredes, não existem tetos e nem mesmo portas. Apenas marcações nomeadas no chão indicando o que é o quê. Os personagens abrem portas imaginárias e agem como se vissem o que não pode ser visto. À princípio uma mera escolhe estética que, a bem verdade é sim ousada, acaba gerando ao filme automaticamente o status de “filme pretensioso, não gostei”.  Não importa o quão boa a trama seja, não importam os diálogos  já foi decidido que o filme é pretensioso por não possuir casas verossimilhantes e prontocabô. “Bota aí aquele Bastardos Inglórios, esse sim é filme bom de verdade.”
Dogville em toda sua pretensão
Outro exemplo de “pretensão” é o álbum Frances The Mute, da banda de rock progressivo The Mars Volta, que é repetidas vezes taxado dessa forma internet afora. O álbum de cinco músicas, quatro delas possuindo mais de 12 minutos de duração (sendo uma de 30 minutos) sem dúvida alguma é diferente do que alcança as massas. Músicas de uma grande complexidade não familiar, que possuem mais camadas de instrumentos do que se ouve comumente e de três a dez vezes mais compridas do que o rádio se sente confortável de tocar. “Ah, esse álbum é pretensioso demais. Master of Puppets é muito melhor.”

Até a capa desse álbum é pretensiosa
Qual o grande receio, afinal de contas? Uso a palavra “receio” pois quem ataca, provavelmente está se defendendo de algo antes de qualquer coisa. Seria então esse medo direcionado ao desconhecido, novo, intimidador? Direcionado ao que não se importa de ter identidade, frente a um mar sem sal de produções sem rosto, sem expressões e sem diferencial? Existiria uma espécie de polícia dos bons costumes de produção que dita o que é válido e o que é presunçoso demais pros gostos acostumados a não esperarem uma variável na solução? Me desculpem os conservadores da arte, mas considero que o vocalista da banda que mencionei reitera de forma sem par o que venho tentando dizer com esse texto pretensioso: ““Progressivo” não é uma má palavra pra nos definir. Se você não está progredindo, está estagnado. E isso não é forma de se viver."


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Abalo

3 da manhã. O celular simples começa a tocar desesperadamente aquele hit pop do início dos anos 2000. Ele se levanta, mas não pega imediatamente o celular para interromper aquela música alta e distorcida do tom de despertador. Marcos espera alguns segundos para finalmente fazê-lo. Dirige-se à cozinha simples de sua casa, coloca o café do dia anterior numa panelinha para esquentar e senta-se à mesa para esperar. Pronto o café, adoça o conforto da madrugada ao som do depressivo tilintar repetitivo do metal contra o vidro enquanto um cão late na distância.
Ao voltar para seu quarto, senta-se novamente na cama e puxa de debaixo dela um velho par de sapatos que já conhecem aquela comuta tão bem quanto o dono do par. As meias, furadas, já pareciam ser capazes de andar sozinhas. Veste sua camisa simples azul, aplica seu desodorante de spray e sai de casa. Por algum motivo ele esqueceu-se de tomar banho hoje. Mas não importava muito, visto que chovia torrencialmente. Chegando ao ponto da kombi, o moço se esgoela pela janela para que os clientes, o que inclui Marcos, se apressassem, batendo forte na lataria do carro. O barulho é quase que totalmente abafado pela chuva. A parte superior do corpo de Marcos hoje balança no banco de trás daquele veículo com a mesma intensidade dos outros dias, mas hoje ele nem ao menos procurou minimizar o efeito.

Hoje havia um corpo de bruços no cantinho de uma das principais vias de acesso a sua comunidade. Marcos nem mesmo para para olhar. Dessa vez ele não está sozinho, porém, já que ninguém aparentemente se importava com aquele defunto, mesmo. O dia segue sua programação normal para os vivos.

Seus colegas de trabalham notam algo de diferente em Marcos hoje mas não parecem saber bem o que é e tampouco perguntam, pois, honestamente, quem tem disposição àquela hora da manhã para engajar os outros numa conversa um mínimo significativa? Eu entendo o silêncio deles. De certa forma.

Agora são 7 da manhã e é agora minha hora e vez de acordar. Eu gosto do fato de que acordo naturalmente todos os dias, sem precisar de despertador. Considero-me um sortudo nesse departamento. Levanto-me, dou uma espreguiçada e sigo para a cozinha. O piso de granito escuro que coloquei semana passada ainda é motivo de orgulho. Igualmente preto era o café que minha esposa havia preparado para mim antes de sair para o trabalho. Ela sabe meu gosto. Após o banho, volto para o quarto. Meias bege ou pretas? Por que não consigo decidir? Fecho os olhos e aleatoriamente toco num dos pares. Hoje vou de meias bege, aparentemente. Por algum motivo estava sentindo que o dia hoje merecia minha melhor gravata. Não penso duas vezes para tirar aquela gravata vermelha de listras brancas da caixa de plástico para finalmente estreá-la. A sensação é de sucesso.

Corro para pegar o elevador e fico aliviado de ver que ele hoje está vazio. Sou o único nele. A rádio toca um hit pop do início dos anos 2000 que todos já haviam se esquecido que existia. Ao deixar o prédio, noto que a praia está mais calma do que de costume para as 8 da manhã. Olhar para o relógio, no entanto, me fez lembrar de que eu já estava me atrasando e precisaria me apressar, pois a reunião hoje dependeria fundamentalmente de mim.

Encontro com Marcos. Ele tinha o rosto entre as mãos e não me viu. Deduzo que estava daquele jeito por ter rompido com sua namorada de quatro anos, noiva há dois, algo que havia me contado no dia anterior. Não sei se por empatia, pena ou egoísmo, mas não o cumprimentei naquele dia. Não dei bom dia. O que sei é que eu possuía um olhar mais determinado do que de costume, sentia que algo excelente aconteceria para mim no trabalho.

Sento-me à direita; era meu lado preferido. A chuva ainda estava forte. Marcos já havia retirado o rosto das mãos e prosseguia naturalmente. Notei que algo estava diferente dessa vez. Um caminhão buzinava cada vez mais alto em nossa direção. Desesperei-me ao ver que Marcos não estava mais com as mãos no volante. E eu, segundos após, não estava mais com os pés no chão daquele ônibus.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

1 de janeiro



O ano virou, resoluções foram feitas e vontade de mudar e melhorar é o que não falta neste primeiro dia do ano. Donos de academia, segurem os bolsos, pois eles vão encher rápido em janeiro. Até fevereiro, claro, quando todos desistem do exercício pesado pois “isso não é pra eles”, afinal de contas. Quem resolveu que iria perder peso já virou o ano comendo Chester, churrasco e aquele resto do Chocottone do natal já amarrado com fio de pão de forma, escondendo, desconcertados, a boca cheia e os dedos lambuzados de chocolate assim que alguém chega para falar-lhes algo. Uma pequena contradição, me parece. De onde surgem tantas resoluções não sabemos, e também não importa, visto que apenas uma população irrisória vai seguir adiante com as suas, pois o resto estará muito preocupado dormindo, se preparando para o começo do ano (que ocorre, para eles, somente após o carnaval) e pensando no que (deixar de) fazer no período de tempo entre o carnaval e a copa do mundo, após a qual estarão comentando que vão votar na Dilma em outubro e depois é só esperar o fim do ano novamente, para fazer as mesmas resoluções do ano anterior.

Mas existem aqueles que de fato seguem adiante. Aqueles que ignoram as dificuldades, o sentimento de inércia que os ronda e conseguem contornar as desculpas que muitas vezes eles mesmos criam. Pessoas que, em agosto, estão felizes por estarem conseguindo cumprir com suas resoluções e encaram reações confusas de pessoas que dizem “Resoluções? Pra 2015? Ué, mas 2014 já tá acabando, só dar outubro e já é ano que vem”. Resoluções para essas pessoas são tradição de fim de ano, assim como lembrar que amam seus pais apenas em dias fixos do ano. Os que seguem com suas metas, naturalmente, não devem explicações a ninguém, mas perguntas sempre são feitas e, animados, acabam contando sobre seu progresso, apenas para serem desmotivados por quem nem ao menos começou com as suas próprias resoluções.

Mas, imagine por um momento que dessa vez você realmente queira cumprir com o que estabeleceu para o ano de 2014 (ou qualquer ano, não importa). Mas como? A vida é muito corrida? O dinheiro é curto? O tempo que é curto? Ou as desculpas que são excessivas? Apenas uma dessas alternativas me parece apropriada ao caso. Imagine também por um momento que você deixou de ser o Fábio, o Matheus, a Ângela, a Rosicleide e virou outra pessoa. Virou outra pessoa mas manteve sua aparência, seu status social, suas condições financeiras e todo o resto (inclusive os problemas). Apenas sua mente mudou. Imaginou? Ótimo.

Esqueça que você é você, pois “você” agora é essa nova pessoa. Essa nova pessoa é disciplinada e determinada e está no comando da sua vida. Essa pessoa consegue fazer coisas que você nunca imaginou conseguir. Essa pessoa, que chamarei de “Mike” fez as mesmas resoluções de ano novo que você: decidiu aprender um instrumento, decidiu que iria pular de paraquedas, aprender italiano, deixar de comer junk-food e iria economizar dinheiro. Mike consegue fazer tudo isso, mas... você consegue? 

Mike começa seu ano acordando cedo e faz uma busca na internet sobre modelos de violão para iniciantes e sobre empresas que promovem paraquedismo. Aproveita também para olhar os preços daquele curso de idiomas perto de casa, e fica surpreso com o preço, que era até que bem razoável. Ao se desconectar, Mike vai até a geladeira e joga todos os hambúrgueres e lasanhas congeladas no lixo de uma vez só, ele sequer para pra pensar. Mike, tendo já recebido seu salário de janeiro, dessa vez deposita uma quantia primeiro na sua poupança, para apenas depois pagar suas dívidas. Passa no mercado e compra alimentos que julga saudáveis – frutas, vegetais, e um peixe bem vistoso – e parece bastante satisfeito com sua decisão, o almoço hoje vai ser uma nova experiência. São agora 10:38 da manhã do dia 1 de janeiro.

Você, por sua vez, acorda às 13:49 e o dia está tão quente que, com um olho fechado e outro aberto, tateia até encontrar o botão do ventilador pra aumentar a potência e dormir mais uma meia horinha, afinal é primeiro de janeiro e você merece o descanso. Ao levantar, finalmente, às 15:28 (passou da meia horinha mas é ano novo, qual o problema?), você fica sentado na cama contemplando a sua latente dor de cabeça da bebedeira do dia anterior até que decide ir até a geladeira, esquivando-se dos corpos estendidos pelo chão, tropeçando em alguns outros. Ao abrir a porta da geladeira, você dá uma olhada por dentro, dando aquela coçada inconsciente nas costas, a vista ainda parcialmente embaçada e a cabeça completamente vazia. A lasanha congelada parece ser a única opção, então você a pega e deixa cair sobre a pia para descongelar, o barulho acordando metade dos corpos babões na casa. O resto do dia consiste de assistir programas de TV e de papos irrelevantes e desanimados com quem vai acordando. 

Agora é maio. Mike já economizou R$6.700 e já sabe 12 músicas no violão, ainda que soem bem arranhadas. Ele não se importa; o caminho é sempre este e ele sabe bem. Seu italiano está carregado de sotaque carioca e seu vocabulário consiste de não muito mais de 200 palavras. Mike se sente feliz por ao menos já conseguir pedir um pãozinho na padaria ou informações variadas em italiano. Mike também perdeu peso. Em quatro meses conseguiu perder 8kg e se sente mais disposto. Cortar aquele junk-food realmente foi uma decisão acertadíssima. E ah, seu pulo de paraquedas havia sido absolutamente extraordinário; Mike possuía agora dezenas de fotografias do salto de causar inveja e recordações ainda mais valiosas. Mike também apresentava um semblante de pessoa autorrealizada, e ele adorava cada segundo disso. Mas muito ainda haveria de ser feito, ele estava apenas começando.

Também é maio pra você, e aqueles 9kg a mais do natal realmente não fariam falta agora... Mês que vem você prometeu a si mesmo entrar na academia, se o dinheiro sobrar. Ao destrinchar um prato de macarrão com hambúrguer, você nota que seu irmão trouxe para casa um folheto do curso que leciona italiano e deixou-o sobre a mesa. Ao lê-lo, você comenta: “Ah, eu bem que faria italiano se tivesse tempo e cabeça pra isso.” Todos concordam. Mais tarde, a conta do banco chega e, meu deus, mais dívidas. Assim você fica negativo! Você queria consertar o violão do seu tio pra começar a aprender, mas com essas dívidas é absolutamente impossível! Você é muito azarado realmente. Você repete pra si mesmo que assim que eliminar as dívidas vai depositar 50 reais todo mês na poupança (se der).

E o fim do ano chega. É dezembro. Mike está mais vívido do que nunca (havia conseguido alcançar aquele peso que tanto precisava alcançar) e conversa com seus parentes e amigos sobre sua vida, soltando algumas frases aqui e ali em italiano, todo risonho, apenas para ouvir aquele iminente “que exibido, esse menino!” de sua querida avó, ao som das risadas de todo o resto. Mike pede licença, retira-se do aposento e pouco tempo depois volta para a sala, agora com seu violão, e, desencapando-o, anuncia que vai tocar as melhores do Barão Vermelho, mas avisa que ainda está aprendendo e pede para relevarem seus errinhos. Todos concordam. Mike passa duas boas horas na roda de familiares tocando e cantando, enquanto todos cantam com ele. Mike agora é o violonista da família. Ele agora também comprou um Peugeot 206 com suas economias. É seu primeiro carro e ele agora não depende mais de ônibus. Mike já tem suas novas resoluções de ano novo, mas essas são secretas e ele não as revela a ninguém.

Também é dezembro para você! Feliz ano novo! Você chega na casa dos familiares, mas é impossível que não notem as olheiras que você agora carrega devido àquelas horas extras no trabalho para que sobrasse um dinheirinho no fim do ano. Os quilinhos a mais também são flagrantes, mas todos compreendem que sua vida não tem sido fácil, é natural. Você mal pode esperar pelo Chester, mas ele acabou de entrar no forno, e agora você tem que conversar com sua avó que só sabe reclamar da vida e falar sobre a novela das 9. O ano vira, as taças viram, a cabeça vira e afoga na mistura de vinho e champagne as suas novas resoluções que ainda nem haviam nascido. Feliz ano novo.