sexta-feira, 4 de abril de 2014

Abalo

3 da manhã. O celular simples começa a tocar desesperadamente aquele hit pop do início dos anos 2000. Ele se levanta, mas não pega imediatamente o celular para interromper aquela música alta e distorcida do tom de despertador. Marcos espera alguns segundos para finalmente fazê-lo. Dirige-se à cozinha simples de sua casa, coloca o café do dia anterior numa panelinha para esquentar e senta-se à mesa para esperar. Pronto o café, adoça o conforto da madrugada ao som do depressivo tilintar repetitivo do metal contra o vidro enquanto um cão late na distância.
Ao voltar para seu quarto, senta-se novamente na cama e puxa de debaixo dela um velho par de sapatos que já conhecem aquela comuta tão bem quanto o dono do par. As meias, furadas, já pareciam ser capazes de andar sozinhas. Veste sua camisa simples azul, aplica seu desodorante de spray e sai de casa. Por algum motivo ele esqueceu-se de tomar banho hoje. Mas não importava muito, visto que chovia torrencialmente. Chegando ao ponto da kombi, o moço se esgoela pela janela para que os clientes, o que inclui Marcos, se apressassem, batendo forte na lataria do carro. O barulho é quase que totalmente abafado pela chuva. A parte superior do corpo de Marcos hoje balança no banco de trás daquele veículo com a mesma intensidade dos outros dias, mas hoje ele nem ao menos procurou minimizar o efeito.

Hoje havia um corpo de bruços no cantinho de uma das principais vias de acesso a sua comunidade. Marcos nem mesmo para para olhar. Dessa vez ele não está sozinho, porém, já que ninguém aparentemente se importava com aquele defunto, mesmo. O dia segue sua programação normal para os vivos.

Seus colegas de trabalham notam algo de diferente em Marcos hoje mas não parecem saber bem o que é e tampouco perguntam, pois, honestamente, quem tem disposição àquela hora da manhã para engajar os outros numa conversa um mínimo significativa? Eu entendo o silêncio deles. De certa forma.

Agora são 7 da manhã e é agora minha hora e vez de acordar. Eu gosto do fato de que acordo naturalmente todos os dias, sem precisar de despertador. Considero-me um sortudo nesse departamento. Levanto-me, dou uma espreguiçada e sigo para a cozinha. O piso de granito escuro que coloquei semana passada ainda é motivo de orgulho. Igualmente preto era o café que minha esposa havia preparado para mim antes de sair para o trabalho. Ela sabe meu gosto. Após o banho, volto para o quarto. Meias bege ou pretas? Por que não consigo decidir? Fecho os olhos e aleatoriamente toco num dos pares. Hoje vou de meias bege, aparentemente. Por algum motivo estava sentindo que o dia hoje merecia minha melhor gravata. Não penso duas vezes para tirar aquela gravata vermelha de listras brancas da caixa de plástico para finalmente estreá-la. A sensação é de sucesso.

Corro para pegar o elevador e fico aliviado de ver que ele hoje está vazio. Sou o único nele. A rádio toca um hit pop do início dos anos 2000 que todos já haviam se esquecido que existia. Ao deixar o prédio, noto que a praia está mais calma do que de costume para as 8 da manhã. Olhar para o relógio, no entanto, me fez lembrar de que eu já estava me atrasando e precisaria me apressar, pois a reunião hoje dependeria fundamentalmente de mim.

Encontro com Marcos. Ele tinha o rosto entre as mãos e não me viu. Deduzo que estava daquele jeito por ter rompido com sua namorada de quatro anos, noiva há dois, algo que havia me contado no dia anterior. Não sei se por empatia, pena ou egoísmo, mas não o cumprimentei naquele dia. Não dei bom dia. O que sei é que eu possuía um olhar mais determinado do que de costume, sentia que algo excelente aconteceria para mim no trabalho.

Sento-me à direita; era meu lado preferido. A chuva ainda estava forte. Marcos já havia retirado o rosto das mãos e prosseguia naturalmente. Notei que algo estava diferente dessa vez. Um caminhão buzinava cada vez mais alto em nossa direção. Desesperei-me ao ver que Marcos não estava mais com as mãos no volante. E eu, segundos após, não estava mais com os pés no chão daquele ônibus.


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