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da manhã. O celular simples começa a tocar desesperadamente aquele hit pop do
início dos anos 2000. Ele se levanta, mas não pega imediatamente o celular para
interromper aquela música alta e distorcida do tom de despertador. Marcos
espera alguns segundos para finalmente fazê-lo. Dirige-se à cozinha simples de
sua casa, coloca o café do dia anterior numa panelinha para esquentar e
senta-se à mesa para esperar. Pronto o café, adoça o conforto da madrugada ao
som do depressivo tilintar repetitivo do metal contra o vidro enquanto um cão
late na distância.
Ao
voltar para seu quarto, senta-se novamente na cama e puxa de debaixo dela um
velho par de sapatos que já conhecem aquela comuta tão bem quanto o dono do
par. As meias, furadas, já pareciam ser capazes de andar sozinhas. Veste sua
camisa simples azul, aplica seu desodorante de spray e sai de casa. Por algum
motivo ele esqueceu-se de tomar banho hoje. Mas não importava muito, visto que
chovia torrencialmente. Chegando ao ponto da kombi, o moço se esgoela pela
janela para que os clientes, o que inclui Marcos, se apressassem, batendo forte
na lataria do carro. O barulho é quase que totalmente abafado pela chuva. A
parte superior do corpo de Marcos hoje balança no banco de trás daquele veículo
com a mesma intensidade dos outros dias, mas hoje ele nem ao menos procurou
minimizar o efeito.
Hoje
havia um corpo de bruços no cantinho de uma das principais vias de acesso a sua
comunidade. Marcos nem mesmo para para olhar. Dessa vez ele não está sozinho,
porém, já que ninguém aparentemente se importava com aquele defunto, mesmo. O
dia segue sua programação normal para os vivos.
Seus
colegas de trabalham notam algo de diferente em Marcos hoje mas não parecem
saber bem o que é e tampouco perguntam, pois, honestamente, quem tem disposição
àquela hora da manhã para engajar os outros numa conversa um mínimo
significativa? Eu entendo o silêncio deles. De certa forma.
Agora
são 7 da manhã e é agora minha hora e vez de acordar. Eu gosto do fato de que
acordo naturalmente todos os dias, sem precisar de despertador. Considero-me um
sortudo nesse departamento. Levanto-me, dou uma espreguiçada e sigo para a
cozinha. O piso de granito escuro que coloquei semana passada ainda é motivo de
orgulho. Igualmente preto era o café que minha esposa havia preparado para mim
antes de sair para o trabalho. Ela sabe meu gosto. Após o banho, volto para o
quarto. Meias bege ou pretas? Por que não consigo decidir? Fecho os olhos e
aleatoriamente toco num dos pares. Hoje vou de meias bege, aparentemente. Por
algum motivo estava sentindo que o dia hoje merecia minha melhor gravata. Não
penso duas vezes para tirar aquela gravata vermelha de listras brancas da caixa
de plástico para finalmente estreá-la. A sensação é de sucesso.
Corro
para pegar o elevador e fico aliviado de ver que ele hoje está vazio. Sou o
único nele. A rádio toca um hit pop do início dos anos 2000 que todos já haviam
se esquecido que existia. Ao deixar o prédio, noto que a praia está mais calma
do que de costume para as 8 da manhã. Olhar para o relógio, no entanto, me fez
lembrar de que eu já estava me atrasando e precisaria me apressar, pois a
reunião hoje dependeria fundamentalmente de mim.
Encontro
com Marcos. Ele tinha o rosto entre as mãos e não me viu. Deduzo que estava
daquele jeito por ter rompido com sua namorada de quatro anos, noiva há dois,
algo que havia me contado no dia anterior. Não sei se por empatia, pena ou
egoísmo, mas não o cumprimentei naquele dia. Não dei bom dia. O que sei é que
eu possuía um olhar mais determinado do que de costume, sentia que algo excelente
aconteceria para mim no trabalho.
Sento-me
à direita; era meu lado preferido. A chuva ainda estava forte. Marcos já havia
retirado o rosto das mãos e prosseguia naturalmente. Notei que algo estava
diferente dessa vez. Um caminhão buzinava cada vez mais alto em nossa direção.
Desesperei-me ao ver que Marcos não estava mais com as mãos no volante. E eu,
segundos após, não estava mais com os pés no chão daquele ônibus.