terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Morfeu

 – Cuidado, Felipe. Aqui, tudo é muito escuro, como deve ter percebido. Além disso, não é educado esbarrar nas pessoas desta forma – orientou, numa voz muito serena, o homem de estatura muito elevada, bengala, roupas e barba roxas e uma pele muitíssimo enrugada
– Como assim? Onde eu tô? Como você sabe meu nome? Quem é você? Onde você tá? – retrucou mais que rapidamente Felipe, um jovem de 23 anos, vestido como quem vai para a faculdade ou tomar um drinque com um amigo.
– Acalme-se, Felipe. Estou bem aqui – e, pondo a mão no obro de Felipe, que se virou rapidamente, a figura continuou:
– Tudo lhe será explicado. O senhor só precisa se acalmar, pois as notícias que lhe darei não serão das mais fáceis de se digerir.
– “Calma”? Como assim “calma”? Eu mal consigo enxergar e ainda por cima... tem esse cheiro... Isso é cheiro de... ferro? Além disso, quem é mesmo o senhor? – disse com ainda mais exasperação Felipe, empurrando para longe a mão da figura de seu ombro.
– Eu sou o Chaveiro, e eu serei o responsável por lhe acompanhar até sua nova morada aqui no plano inferior – respondeu, mantendo a serenidade de sempre.
– Peraí... Não, peraí. Você disse “plano inferior”? Isso é tipo um submundo? Você tá querendo dizer, por algum acaso... Isso significa que eu MORRI?! – indagou em voz alta Felipe como para si mesmo, com os olhos arregalados e fixados em algum ponto aleatório daquele chão coberto de pedrinhas verde-musgo.
 – Sim, Felipe. Você faleceu há exatos 7 minutos e 56 segundos. Você reagiu a um assalto em frente à sua faculdade no dia 20 de março de 2015, às 9:37 da noite. – anunciou, com certa preocupação e procurando sempre fitar Felipe nos olhos, o enigmático homem.
– Não... Não pode ser. Simplesmente não pode. Não pode porque eu não me lembro de nada disso. Não lembro, você tá mentindo. Mentindo na minha cara. – retrucou o jovem, girando em torno do próprio eixo em movimentos bruscos, como se estivesse buscando por alguma explicação ao seu redor.
– Quando seres vivos morrem eles nunca são capazes de se lembrar dos momentos imediatamente anteriores à sua morte, pois essas memórias são enviadas ao Contador para arquivamento – explicou o homem com grande tranquilidade na voz.
– Já sei! Isso aqui é um sonho lúcido! Melhor eu aproveitar, né, esse tipo de sonho é bastante raro! – exclamou Felipe, balançando o indicador no ar como se finalmente tivesse entendido do que tudo se tratava. Mas dessa vez o homem se absteve da resposta e se limitou a observar o jovem, aguardando um momento oportuno para ter a palavra. Felipe continuou falando para si mesmo:
– Eu vi isso naquele “Inception”, do Nolan. “Waking Life” também. Por falar nisso – e se aproximou da figura, dando dois tapinhas no ombro dele – dois filmaços, hein. Caso não tenha visto, deveria ver – e se afastou novamente, dando as costas para o velho. Após alguns segundos, ele continuou:
– Agora só preciso que alguém me acorde porque, com todo o respeito, já enchi o saco daqui. Esse lugar cinzento, esse cheiro estranho... Que não dá nem pra enxergar um palmo na minha frente. Fora que tá um frio do caramba. Se bem que, parando pra pensar, eu nunca tinha tido um sonho tão realista – e se beliscou – apesar disso não doer nada. Por que não dói?
– Porque aqui não existe dor física – respondeu imediatamente o enigmático homem, não percebendo que Felipe havia feito a pergunta para si mesmo – Entenda, neste mundo impera o pragmatismo. Dores servem o propósito de manter os seres vivos sãos e, bem, vivos. Você não está mais vivo, no sentido literal da palavra e, portanto, não necessita mais dessa função fisiológica de seu corpo – disse, como quem narra regras já lidas um milhão de vezes antes.
Felipe o fitou por alguns segundos e finalmente disparou:
– Mas vem cá, como eu posso realmente saber, ter certeza, de que eu não tô sonhando, hum? – perguntou, em tom de desafio ao velho.
– Desta forma ­– e empurrou o rapaz no chão com toda a força. Felipe, caído, imediatamente percebeu que, caso estivesse sonhando, teria acordado naquele instante com a queda, como é comumente discutido e argumentado no meio dos sonhadores lúcidos. Ele, então, incrédulo e ainda caído no chão, disparou:
– Isso é uma pegadinha! Eu não posso estar morto, simplesmente não posso! – argumentou, num tom de voz mais alto e já carregado de um aparente desespero.
– Por que diz isso, Felipe? – questionou o homem de roxo, genuinamente confuso.
– Porque não posso! – e levantou-se – Você não tem a menor noção da quantidade de planos que eu fiz... ou estava pra fazer! Eu ia trabalhar na Noruega um dia! IDH absurdo de bom naquele lugar. Ia virar escritor também porque eu sempre me pego tendo ideias que adoraria colocar no papel. O meu problema sempre foi não ter a disciplina de parar e escrever, infelizmente – completou, a última frase num tom um pouco mais baixo do que o comum.
– Felipe...
– Eu tava aprendendo francês! “Je savais quelques choses déjà, tu vois?” E o mandarim que eu tava me preparando pra aprender? Não, não, não, não, não, isso não pode estar acontecendo. Eu ia até abrir uma empresa, caralho! – gritou, levando as mãos à cabeça e encarando subitamente o velho – Não sei de quê, mas ia. Juro que ia – disse Felipe, agora com o desespero, ainda mais aparente do que antes, estampado nos seus olhos, que haviam voltado a fitar o nada.
– O senhor precisa se acalmar, Felipe. Venha, acompanhe-me ­– tentou o homem acalmar Felipe, ponto o braço em torno de seu pescoço – precisamos nos dirigir a seus aposentos agora. O senhor vai gostar, tenho certeza. A comida lá é ótima, e o senhor comerá somente por prazer, já que fome também não existe por aqui.
– Mas... Por que tão cedo? Por que, sei lá, Deus, Zeus, Shiva, não me deu a chance de concretizar sequer um dos meus planos? – perguntou o rapaz, que dava somente rápidas olhadas para a figura, por receio de tornar ainda mais real aquela experiência aterradora.
– A justiça não é uma das características mais notáveis do Plano Terreno, Felipe. Você certamente já havia notado isso, mas nunca acreditou que um dia seria você o injustiçado. Da mesma forma que os cartunistas franceses mortos pelos radicais islâmicos não acreditavam nisso, entende? Ou qualquer grupo de viajantes que dormia enquanto seu ônibus despencava de um desflideiro qualquer. Acontece, Felipe. E dessa vez aconteceu com você, infelizmente – explicou, numa voz calma.
– Mas...
– Você só precisa de um descanso agora. Uma boa noite de sono vai te ajudar a...
E a música distorcida do Nine Inch Nails no despertador do celular fez com que Felipe se levantasse suado em sua cama. Seu quarto era tão real quanto antes, e o homem de roxo não era mais do que uma projeção de seus mais profundos medos inconscientes que, naquela noite, o comeram vivo.  

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